Mania da perseguição

A verdade é que a história começara antes, mas, para não complicar, digamos que tudo começou no dia em que me cruzei com ele no Capa Negra. Quem não é de cá não saberá, mas a gente vai ao Capa Negra quando quer iludir-se com a ideia infundada de que vive numa cidade cosmopolita e que é possível ir jantar à hora que nos apetece.

A única mesa livre era junto aos aquários e eu sentei-me ao lado dos lavagantes, que espreitaram toda a refeição com os seus olhos redondos, que mais parecem botões aproveitados de um casaco velho, e fazendo vibrar as antenas finíssimas e curvas ao ritmo das nossas vozes. Sinto um frio no estômago de cada vez que vejo estas criaturas, e por isso me foi tão penoso aguentar toda a refeição sentindo-as ali ao lado, a flutuar no seu limbo silencioso. Nem me atrevia a olhá-las para não alvoroçar essa minha fobia que facilmente se poderia transformar em pânico.

E foi então que o vi, no lado oposto da sala, no que parecia ser uma insossa discussão com alguém que eu não conhecia. Lá estava o Cronista. Não nos movemos no mesmo mundo, como entenderão, daí a improbabilidade de nos cruzarmos. Ele terminara a refeição, o empregado trazia-lhe já o troco. Levantou-se e saiu com o seu acompanhante, e sem olhar na minha direcção. Ter-me ia visto? Estaria já à espreita muito antes de eu poder descobri-lo? Os malditos bichos não me haviam deixado reparar em nada mais.

Certo, certo é que a sua crónica seguinte, publicada no sítio do costume, descrevia, com inquietante detalhe, alguém que, padecendo de uma insólita fobia aos crustáceos, endoidecia durante a refeição num restaurante cujas paredes estavam revestidas com aquários, e, lançando mão a uma tenaz de marisco, ameaçava os convivas e acabava a fugir pelas ruas, até a polícia lhe deitar mão.

Que diabo, era uma coincidência, mas não mais do que isso. Afinal, os que tinham partilhado mesa comigo não tinham dado conta de nada, como é que alguém que estava tão longe podia ter descoberto? O mais certo era nem me ter visto.

Ficaria por aí a história se eu não me tivesse cruzado novamente com ele, umas semanas depois. O jornal anunciava, num microscópico rodapé, um concerto semi-clandestino de um obscuro clavicordista belga, Klaus Clanmen de Veldebuck, num museu que estivera encerrado até essa tarde e que voltaria a encerrar nada mais acabasse o concerto.

Até à sala de concerto, era preciso atravessar longos corredores de paredes cobertas de telas que alguém tapara com uns panos castanhos, muito coçados. Havia móveis carcomidos pelo caruncho, vitrinas nas quais o pó se insinuara por detrás dos vidros e revestira medalhões, caixinhas de rodapé, o antigo leque de uma cocote, um programa de ópera picado por manchas de humidade.  Tudo me fazia uma alergia medonha e eu sofria ainda de uma constipação em fase de rescaldo. Contive as assoadelas durante a récita mas não pude deixar de tossir disfarçadamente e pigarrear uma ou duas vezes.

Foi só à saída, quando recolhia o casaco da cadeira e levantei os olhos para o fundo da sala, que o vi. Voltou-se para a porta assim que o olhei, ou talvez já estivesse a fazê-lo por essa altura, e escapuliu-se, mas o certo é que nos lugares que cada um de nós havia ocupado, ele tinha podido reconhecer-me de perfil sem nenhuma dificuldade. Mais uma vez se afastava sem dar sinais de haver-me visto. Enfim, nada que me perturbasse.

Mas quando abri a página, na quarta-feira seguinte, e li a mordaz crítica aos constipados que não se inibem de frequentar concertos, e maculam a experiência de fruição musical alheia com os seus lamentos pleurais, soube que me reconhecera e se divertia a exagerar a descrição para meu tormento.

Passei a semana na expectativa de cruzar-me com ele em qualquer sítio da cidade. Queria confrontá-lo, obrigá-lo a confessar as manobras literárias que me ridicularizavam. Nunca se consegue provocar um encontro fortuito, já se sabe. Quanto mais se força um acontecimento mais improvável ele se torna. E assim se passou a semana sem novo encontro. Na quarta-feira abri a página sem inquietações, sabia que eu não poderia cruzar aquelas linhas.

O texto dessa semana desabafava sobre a dificuldade de encontrar tema que permitisse cumprir a obrigação periódica da publicação. Descrevia os caminhos tortuosos e lamacentos da escrita oca, e lamentava a ausência de uma inspiração que costumava chegar quando menos se esperava, na forma de um encontro fortuito que não se cumprira nessa semana.

Fechei a página com um sorriso sarcástico. Com que então, esta semana nada, hem? Nenhum alvo para a chacota, nenhum gesto ou movimento ou secreto temor explorado sem piedade, ampliado com cruel exagero? Esta semana não há assunto. É bem feito. Dei por encerrado o caso e passei a noite sem me lembrar mais disso.

No dia seguinte, pela manhã, vi-o passar de carro à porta da minha casa. Fiquei com a impressão de que arrancara o carro quando eu abri a porta, que estaria ali à minha espera, mas não estava certa disso. Foi a primeira das suas inúmeras aparições ao longo desse dia. Era ele a espreitar do café em frente, escondendo o rosto atrás da chávena da meia de leite. Era ele a espiar-me atrás da folha de jornal, sentado na esplanada. Era ele a forçar-me a entrar num absurdo jogo de gato e rato no labirinto dos corredores do supermercado. Rondava à espera do meu deslize. Procurava um tema para a maldita crónica.

Corri para casa, fechei janelas, baixei persianas, desliguei telefone e telemóvel. Não abro a porta a ninguém. Sempre quero ver sobre que vai ele escrever na próxima semana.

Comments

  1. mjoaorijo says:

    a próxima vai ser sobre alguém que está fechado em casa à espera do assassino cronista eheh… adorei!!!

  2. Ricardo Santos Pinto says:

    Que regresso em grande! Quem é o gajo?

  3. Luis Moreira says:

    Eu sobre o cronista não me pronuncio porque estou cheio de ciúmes e, neste estado, sabe-se que só se dizem asneiras. Mas sobre os aquários, sim. Estava na Alemanha há já 8 dias, cheio de cerveja, bifes e salsichas.No meio de um bosque frondoso, um restaurante tinha um aquário com trutas a nadar docemente e crianças a ver enquanto os pais comiam. Boa altura para comer peixe, mas o que nunca me passou pela cabeça é que a “maid” fosse ao aquário e pescasse uma truta. Vi-me confrontado com o choro das criancinhas, com os seus olhares acusadores por ir comer um peixinho, todas à volta da minha mesa. Lá voltei para as salsichas…e nunca, mas nunca mais comi uma truta que fosse.

  4. Carlos Fonseca says:

    O importante é o regresso – e que regresso – o gajo que se lixe.

  5. Fixe! Aleluia! In hoc signo vinces

  6. carla romualdo says:

    Obrigada a todos, custou mas foi.
    Quanto ao dito cujo, digamos que nada do que aqui se conta é totalmente mentira e nada do que aqui se conta é totalmente verdade. Mentira: há algo que é totalmente falso . Klaus Clanmen de Veldebuck não toca clavicórdio.

  7. carla romualdo says:

    e então não é, Luís?

  8. maria monteiro says:

    E o ar importante que as pessoas vestem quando acompanham o empregado até ao aquário… aí escolhem exactamente a sua lagosta, sapateira, lavagante… não desgrudam até o eleito ser apanhado na rede para, passado um bocado, lhes chegar à mesa servido numa travessa. No Solmar, nas Portas de Santo Antão, aprendi que comer lá só mesmo numa mesa longe dessas vistas.

    Dentro ou fora dum “aquário”, com ou sem redoma, observada ou não … bem reaparecida a tua escrita, Carla

  9. Luis Moreira says:

    Que bela prosa, Carla!

Trackbacks

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