
lembrança do debate entre pais e educadores em Castelo de Paiva
Aos pais sem crianças e às crianças sem pais.
1. Ser feito.
A frase, ser feito, parece ser a reiteração de uma ideia sistemática ao longo dos meus textos. Não é por acaso que a reitero, quer em ensaios, quer em artigos quer, ainda, e com maior latitude, nos meus livros. É reiterada até estarmos certos de como é que um ser humano se faz, na curta e duradoura infância, na dinâmica e repentina puberdade que abre a flor da vida de adulto. Ou, simplesmente, em adulto. Mas, será que os adultos, já grandalhões, também são feitos? Ou será que o adulto, como diz Alice Miller, que sempre lembro, leva em si uma criança. Ser feito é heterogéneo, é, diria, um processo que ocorre ao longo da vida. Um adulto é uma criança sempre a crescer até regredir. É como uma metamorfose. Uma criança é a semente processual do adulto, a base do que será como pessoa no futuro. Porém, Alice Miller e Melanie Klein, entendem que o adulto é resultado da criança, hipótese que não seria novidade se não acrescentassem a ideia da influência silenciosa que a infância tem no adulto. Todavia, ser feito é um processo sempre em desenvolvimento, que nunca pára, e que, por conveniência para as nossas contas e para deslindar responsabilidades, o mundo erudito e do poder tem classificado em ciclos com uma certa responsabilidade para a lei ver. E os pais também. Difícil questão esta de se ser feito. Já foi problema em 1633 com o jesuíta Athanasius Kirchen ao dizer que o mundo era uma sucessiva evolução, que a terra girava em torno do sol e que a Arca de Noé era a evolução das espécies, corroborando assim o sistema heliocêntrico do frade Nicholaus Copérnico que em 1530 já tinha falado de forma atrevida de que a terra não era o centro do universo contudo, para não ser queimado, negou a sua convicção, acrescentando, ao assinar a acta de retractação: ” e no entanto, move-se”. O contexto faz da frase uma infantilidade ou uma verdade. A época ajuda, ou não, a entender o que se pensa e se descobre. Porém, ser feito é difícil de explanar. Ser feito já era complexo quando a união era sacramental e para toda a vida e entre homens e mulheres não parentes. Nos nossos dias assistimos a uniões de facto entre pessoas do mesmo ou diferente sexo, que procriam ou adoptam. Haja felicidade na nossa cultura por sermos capazes de optar tal e qual sentimos. Haja paciência para dizer que ser feito é um processo delicado no ritual sacramental ou no factual. Ser feito é a criação de um indivíduo. Capaz de optar, de (se) amar e de respeitar, em consequência, aos outros. Tão simples quanto isso, mas tão complexo por se esquecerem os feitores de pessoas da existência de um contexto que acaba por nunca ser verdade no tempo do feito, mas uma tese anos depois. Respeitada e cuidada. Ser feito tem sido um andar para trás e para a frente no processo educativo dos seres humanos. Processo simples, caso se saiba como começa o processo de confecção do ser humano.
2. Amor conjugal
Tenho observado que, seja entre Picunche, Galego ou Português, Europeu ou fora do Ocidente formal, aparece essa fatal altura da vida quando dois gostam do bom e do mau do outro. Por outras palavras, gostam do bom e sabem entender o que parece mau. Porque definir bom e mau é mais difícil que definir bem e mal. Bom e mau, são qualidades, sentimentos, emoções, movimentações intangíveis e virtuais de pessoas. Bem e mal, são comportamentos entre um indivíduo e o seu grupo social, simpatia ou antipatia de um para outros e vice-versa. Bom e mau, é uma forma de ser íntima, a dois. Esse dia em que se olha profundamente nos olhos do ser que aparece à nossa frente e, sem sabermos porquê, gostamos. E queremos estar juntos. E queremos tocar. E queremos sentir esse indefinível prazer de estarmos a sós com esse outro. Fundar uma unidade separada do grupo ao qual parecemos pertencer ou com o qual devemos interagir. Uma unidade que designamos lar. Aos vinte, aos trinta, ou depois, ou antes. Não há idade. Acontece. Miller e Kleine poderiam dizer que é o inconsciente que descobre o inconsciente do outro e o aceita e procura… inconscientemente… Em palavras simples, a nossa temperatura afectiva aquece e leva-nos a estarmos na mais terna das intimidades. Essa que começa pelas palavras, pelas prolongadas conversas sobre si, pelo prolongado ouvir o que o outro diz, pela atracção infinita dos objectivos do outro. Quando há esse objectivo. O amor conjugal acaba por ser a pedra fundamental da confiança de quem deseja compartir o seu objectivo na vida com um outro ser que também tem objectivos na vida. Como amar uma outra pessoa se não sabemos o que desejamos fazer de nós e qual é a nossa forma de estar entre as inúmeras interacções às quais estamos obrigados para nos reproduzir e para sermos entidades socialmente úteis? Porém, capazes de entregar um grão de areia ao desenvolvimento da História que construímos, até fazer do grão uma rocha que fundamenta a nossa existência. Será que amor conjugal é o suspiro de fazer a corte, de cortejar um outro e estarmos penteados e amáveis, sempre alegres e contentes? Tenho observado esses casais baseados na estética que, por vezes, permanecem juntos toda a vida; tenho observado esses casais cujas vidas vão andando de forma serenamente precipitada entre os objectivos de um que o outro entende e os do outro, entendidos também. E gostam de ver como um e o outro estão ocupados nos seus afazeres. E tiram parte do seu tempo para dar sítio ao tempo do outro, enquanto o outro no seu dia faz o mesmo. E admira o que é feito por um enquanto o outro admira o feito pelo outro. Um terceiro momento paralelo ao anterior, esse anterior composto de dois movimentos de vice-versa, é a vida em comum dividida entre o objectivo pessoal e o objectivo desenhado. Objectivo desenhado que passa pela feitura acima falada de fazer outros. Fazer por prazer, é simples: pura genética. Fazer por partilhar, é a aritmética do meu tempo pessoal dividido pelo pessoal tempo do outro e multiplicado pelos cuidados investidos no resultado de ser feito. Geneticamente ou em adopção. A união de facto resolveu a questão de ter que falar em masculino, feminino, plural, consanguíneo e outras minúcias da linguagem que até a escrita ficava num problema inacabável. Amor conjugal é a peça fundamental para exibir afectividade perante os rebentos que resultam do mesmo. Com rituais e costumes não partilhadas por serem íntimos mas entendidos sem se saber como, pela criança que observa. A criança alegre que sabe ser austera na sua dor e no seu exprimir de sentimentos, é resultado do amor conjugal que começa no amor à obra própria dentro do contexto da obra do outro. E o tempo passa tão rápido e ocupado entre eu e o outro, que sem darmos por isso, os adultos crescem ao pé do crescimento das crianças. Esses seres que sabemos amar porque aprenderam o amor do amor conjugal. Ser feito de amor conjugal é o itinerário da criança, saibam ou não os do grupo individual e autónomo do lar. Ocupados como estão, nem reparam quanto é que se amam e como tomam conta dos seus rebentos. Até ao ponto que nós, observadores, com certo acanhamento, vemos, calamos e comparamos. E aprendemos. Como tenho observado entre Picunche, os Galegos, os Beirões de Portugal e outros, ao longo dos anos. Ser feito de amor conjugal, é o itinerário da criança.
3. Cuidado parental.
Três acções paralelas, a minha, a tua, a nossa. Dentro das três, o cuidado parental ou tomar conta do itinerário da criança. Itinerário distante dos definidos pelas leis e os costumes. Itinerário construído por nós enquanto vamos construindo as nossas vidas. O cuidado parental é o processo de transferir sem palavras a base da solidariedade recíproca de dois que se começaram a amar e que resultaram em três, quatro ou mais, ao longo do tempo cronológico. O cuidado parental consiste nessa cronologia de saber e entender o que é conveniente para os rebentos na sua idade e capacidade de observar e imitar. Consiste em saber ou sentir que os meus assuntos passam a ser de segunda ordem perante os assuntos da infância e durante o seu crescimento. Consiste em saber aceitar as fobias que os progenitores sentem em frente de perigos, reais ou fantasmagóricos, do itinerário infantil. Itinerário que muda na medida da aprendizagem que a criança faz, donde o adulto cresce ao pé da pequenada. É a pequenada que leva a sentir e definir o conveniente e a separar a minha conveniência da conveniência dos pequenos feitos por nós. Seja, cuidado parental, talvez, o entendimento do entrar a miudagem no mundo da interacção. Entendimento que leva a investir, a arriscar, a trabalhar no que for preciso para apoiar o ser feito. Seja talvez, cuidado parental, ou doçura de nunca empurrar além do permitido pela capacidade do mais novo. Seja, talvez e em fim, rebaixar as minhas pretensões de ser feliz e dormir como desejava para passar a ser um casal que aceita desafios, doenças, alegrias, classificação das pessoas entre conveniente ou inconveniente para a minha pequenada, ou entender que há anos da minha vida onde já não sou autónomo, solitário e fantasiar entre as minhas amizades e vizinhanças para passar a ser o submetido ao tempo do pequeno ser feito seguir o amor conjugal. Amor que separa da rua habitual, das horas, da estética da minha inclinação pessoal. Porque se a minha pessoa parceira entende o meu contexto, a minha criançada não tem porque não entender mais do que o feito de saber que eu sou tudo para ela e que existem partes de mim que são apenas minhas. Cuidado parental que, exercitado em presença dos pequeninos, acaba por ensinar sem dizer. Donde, cuidado parental é a pedagogia na qual o meu objectivo pessoal descansa e rende enquanto a minha criança vai percebendo que o seu objectivo é respeitado e fica habituada a não ser interrompida excepto quando sabe que lhe faz mal. Saber sentimental, porém, a racionalizar na prática de cuidados que o amor parental, sempre a dois, significa.
4. Entre o cansaço e a calma.
A minha eterna coda final. Os parágrafos anteriores podem parecer fantasia. Podem, talvez, para quem não tenha a erudição que a natureza dá quando criamos crianças. Quando as fazemos. Quando sabemos ser cônjuges entre nós, adultos em eterno crescimento, e a imagem parental que damos aos nossos rebentos. À qual ficam habituados pela confiança de dizer com voz calma, não filho, agora não, espera um momento, anda cá comigo e descansa. Nós, adultos, vivemos o estrangulamento de sermos pessoas socialmente viáveis e pater-mater-familiae ou pai-mãe de família com um rosto agradável para um ser que sabe também ser hostil quando preciso. Há as formas de ser primitivas e as formas socializadas. O itinerário da criança é, além do mais, desconhecido e pretendemos nós, adultos, subjugar ao mais novo a nossa forma de ser sem respeitar a sua. Como essa linda cena que observei faz três dias: um bebé alegre, cheio de fome e de sono, a beber o biberão nos braços da mãe e adoptar a forma fetal de rodear com um doce braço livre e adormecido pelo sono do corpo, o seio da mãe enquanto ia bebendo o seu leite de garrafa. E, sem dar por isso, bebeu tudo e adormeceu finalmente. O pai observava e nada dizia porque o seu papel era a seguir, embrulhar o bebé numa manta e lavá-lo para o berço. União de cônjuges faz união paternal ou parental como tenho denominado no texto, quer na pessoa da mãe, quer na pessoa do pai. São os anos que sabemos serem curtos e intensos durante um período da vida, quando se constrói o ninho que o neo-liberalismo não nos permite fazer com a facilidade e alegria que usamos no nosso amor parental e conjugal. O itinerário da criança é apenas um: apoio emotivo e material nas descobertas que o mais novo faz: a mão ao gatinhar, a ausência de pés sujos pelo chão usado para brincar, fechar as tomadas eléctricas, mesmo se ficarmos sem luz num canto do quarto. E muita admiração pelas formas usadas pelos mais novos na sua demora de pesquisar o universo que se vai definindo enquanto cresce. Separação necessária de adultos galinhas com as suas crianças e, o mais importantes, usar cada dia no processo de ensinar porque vamos abrindo caminho à individualidade autónoma dentro da qual o itinerário da criança vai entrar para, assim, ser solidário com os outros ao retirar da emotividade familiar essa forma recíproca de agir. Com toda a intervenção prudente dentro dos grupos sociais aos quais esse itinerário leva o mais novo a agir: creche, escola, secundário, jardim-de- infância, vizinhança, ritos domésticos, interacção prudente com os mais velhos da família extensa. Eis, caro leitor, o que me parece ser o caminho de vida da infância em conjunto com os pais que a ela dedicam boa parte de si. Os saberes que um dia, já não serão mais esses pequenos que não deixam dormir e fadigam mas que, acordados e descansadas, são uma risada do lar.
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