
(adão cruz)
(Texto de Marcos Cruz)
Muitas vezes tive a tentação de me juntar a alguém com sucesso, alguém que me pudesse atrelar, por piedade ou, de preferência, por me reconhecer valor, e levar-me aonde eu sozinho nunca conseguiria chegar. Mas algo, nessas alturas, me dizia que, uma vez cometido esse acto de compaixão, eu ficaria com uma dívida de gratidão para com a pessoa em causa e moralmente obrigado a não a deixar ficar mal, o que transportaria o padrão de sucesso da operação para ela e não para mim, ou seja, todo o meu percurso a partir daí se mediria pelos passos do meu salvador e não pelos meus. Eu deixaria de ir a reboque da minha exigência e passaria a ir a reboque da dele, ou até, na pior das hipóteses, a reboque da minha exigência projectada nele, que seria igual à minha exigência multiplicada pelas vezes que o achava a ele melhor do que eu. Sim, porque só se justificava aceitar a sua oportunidade se o achasse melhor do que eu. A minha exigência nunca me deixaria pensar: ok, o projecto é dele, por isso já não preciso de me cobrar tanto. Pelo contrário: nesse caso, haveria uma factura dois-em-um para um eventual sucesso um-em-dois.
Nada disto significa individualismo, não se confunda o que digo. Significa, sim, consciência da dimensão do indivíduo, nos seus deveres para consigo e para com os outros. Antes de mais, a nossa luta (talvez fosse melhor dizer a minha, por razões de coerência) deve ser para connosco, no sentido de nos tornarmos um projecto de sucesso para consumo interno, de nos construirmos passo nosso a passo nosso, sabendo que podemos infligir os golpes que quisermos no silêncio que ele, como um desenho animado, se reconstitui sempre, volta sempre à forma inicial e última, enquanto nós crescemos, mudamos e nos moldamos golpe a golpe. Já não sei quem o escreveu (aliás, veio esta semana citado num jornal desportivo), mas “saber mais é ser mais”, e (como diria La Palisse, que também poderia ter escrito a frase anterior) só se é se se for, devendo este “for” ser lido na sua dupla acepção, ontológica (ser) e accional (ir). Ir sendo ou ser indo, portanto. Sem rebocar e sem ser rebocado. A experiência, a minha, claro, faz-me dar um toque pessoal a uma célebre lição moral de uma das fábulas de La Fontaine: “Guardado está o rebocado para quem o há-de comer”. Não vão por mim.
(Comentário do próprio Marcos Cruz, ao quadro que ilustra o texto)
Acho que a publicação deste texto pelo meu pai é oportuna, assim como a conjugação com o quadro, que me provoca uma emoção para lá do estético. Sinto ali uma vertigem qualquer, um arrepio, que não tem só a ver com a frieza abrupta das construções ou dos edifícios e, aliás, se reforça no contraponto com a candura que envolve as duas figuras. Há uma aura de ilusão em redor da pintura, assumida em termos mais concretos na não correspondência entre as partes acima e abaixo daquela linha central, que parece (lá está) delimitar um espelho, sensorialmente captado por mim como sendo de água. Entrevejo ali, falando de modo genérico, o rural e o urbano, não necessariamente associados de forma respectiva ao puro e ao podre, ao sagrado e ao profano – nada de maniqueísta me surge no quadro, a força dele não é dessa luta, é justamente a da revelação das duas faces da moeda, de a luz ser parte da sombra e, nesse sentido, de nada ser nada, exactamente pela impossibilidade do tal contraponto fora do espectro da ilusão. A vertigem ali é toda essa: o espanto da figura mais alta e aparentemente mais velha e a absorção na paisagem (digamos assim) da que a acompanha, dois estados de espírito distintos que se unem e complementam (e poder-se-ia até especular sobre se a mancha no cimo da cabeça da primeira, arrisco-me a dizer, mulher não remeterá mesmo para um novo espírito, um feto na sua mente, uma semente, o que, a ser verdade, apontará mais à ideia de mudança inevitável, de devir universal independente do sentido que nele vejamos, do que ao aspecto procriativo e, menos ainda, especificamente geracional). O que me arrepia no quadro é muito o fundo falso, o medo e o desejo reflectindo-se um no outro, a paisagem que se assemelha a uma boca com os dentes de cima bem afiados e prontos a atacar e o lábio inferior sereno e aguado como que a encorajar a acção, o salto no desconhecido, prometendo sarar as feridas de qualquer guerra que se aproxime. É um quadro de esperança vazia, o que não equivale a dizer que é um quadro vazio de esperança. É apocalíptico e seminal. São essas, afinal, as duas faces de todas as crises – e as duas faces de tudo. Ainda bem que nos inspiramos uns aos outros. Que seja assim até nos expirarmos.
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