Como ouvir a esquerda?

Posso sentir uma alergia burguesa a à dureza repetitiva da retórica comunista ou uma aversão provinciana aos tiques lisboetas de muitos bloquistas, posso não gostar que alguma esquerda consiga descobrir virtudes em regimes tenebrosos como o da Coreia do Norte ou de Cuba, posso detestar o conservadorismo sindical na escolha das formas de luta, posso, até, ver com desagrado a promiscuidade entre partidos e sindicatos (que, apesar de tudo, me parece mais legítima do que aquela que ocorre entre governo e empresas).

Ultrapassando as críticas e as embirrações, como é possível não ouvir com atenção as palavras de Arménio Carlos nesta entrevista? É um comunista empedernido? Partilhará, com os seus camaradas, de uma estranha admiração por ditadores sinistros? Convive mal com a queda do Muro de Berlim? Talvez sim, mas não é verdade que os trabalhadores têm perdido direitos? Não é verdade que os problemas do défice se devem a uma gestão incompetente e corrupta dos dinheiros públicos, pela mão de sucessivos governos? Não é verdade que, em muitos casos, os prejuízos do Estado se devem, por exemplo, a contratos leoninos que favorecem privados, como é o caso da Fertagus? Insistir em retirar direitos aos trabalhadores, injustificadamente, poderá ter outro nome que não seja “exploração”, mesmo que isso incomode Mário Crespo?

Se os trabalhadores se sentem diariamente injustiçados, vítimas de abusos incompreensíveis, deve esperar-se que fiquem calados, que aceitem o máximo de precariedade e o mínimo de direitos, em troca de uma esmola em forma de emprego, só porque uma cambada de engravatados mentais dominados pelos bancos alemães diz que é assim porque é inevitável e porque são assim as regras dos mercados? Não sei se me apetece ir beber um copo com Arménio Carlos – dúvida que nos tira, certamente, o sono a ambos – mas o diagnóstico que faz é tão justo como sereno. Fica-lhe mal gostar, por exemplo, de Kim Jong-il? Fica, mas a lucidez da sua análise fica-lhe muito bem. Ouçamo-lo.

Comments

  1. A esquerda ouve-se com um búzio. bfds

  2. O Rural says:

    Chamar trabalhadores aos funcionários, professores, maquinistas da CP, pilotos da TAP, motoristas da carris etc. e não lhe chamarmos burgueses…

    É chamar assobio ao objecto de urinar.

    Sindicalistas? em Portugal foram uma das causas da ruina nacional.

  3. jorge canadelo says:

    É um abuso presumir que se detém o conhecimento da consciência do outro mas ouvir e reflectir são sinais de tolerância e de inteligência. Ouçamo-lo.

  4. António Fernando Nabais says:

    #2
    Essa de não se poder acumular a condição de burguês com a de trabalhador é uma posição de esquerdista retrógrado, ó rural. O final do comentário, por outro lado, é próprio da direita que se limita a debitar frases feitas: quando puder, demonstre que foram os sindicalistas a levar o país à ruína e não os governantes.

  5. Claro que é verdade:

    -Não é verdade que os problemas do défice se devem a uma gestão incompetente e corrupta dos dinheiros públicos, pela mão de sucessivos governos? Não é verdade que, em muitos casos, os prejuízos do Estado se devem, por exemplo, a contratos leoninos que favorecem privados, como é o caso da Fertagus? Insistir em retirar direitos aos trabalhadores, injustificadamente, poderá ter outro nome que não seja “exploração”, mesmo que isso incomode Mário Crespo .

    E o que importa o que incomoda ao senhor aqui referido???MC! e o que nos importa?

    O resto, é verdade pura e dura e isso incomoda!

  6. As condições reais de trabalho pior que nunca…Negar esta evidência é absurdo.
    Afinal quem se esconde atrás de ideologias?

  7. Rui Miguel Duarte says:

    Há dias, vi (não me lembro se na RTPi se na SICi) reportagem sobre PPP. A concessão ferroviária na Ponte 25 de Abril (com a Fertagus, precisamente) foi dada como boa excepção na regra das ruinosas concessões. Traz, ao que parece, dinheiro para o Estado, que o concessionário paga.

Trackbacks

  1. […] parte que me toca, vou pensando e duvidando com o lado esquerdo. É o suficiente para não ficar descansado com o que se passou no dia 1 de Maio de 2012. […]

  2. […] já tive oportunidade de escrever, goste ou não do estilo, concordando mais que discordando, o saldo que faço das várias […]

  3. […] muitas das outras que a esquerda precisa de continuar a lutar contra os mesmos e é por isso que vale a pena ouvi-la, goste-se ou não do estilo. Eu sei que há palavras que tresandam a barbas revolucionárias, a […]

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