Sala de consultas num hospital público (porque é fundamental defender o Serviço Nacional de Saúde). O doente (utente para ministros e gestores) entra, cumprimenta o médico e senta-se.
MÉDICO (semblante antecipadamente compreensivo, porque a maior parte dos pacientes é um cambada de hipocondríacos ou de chatos com problemas de saúde sem gravidade): Ora diga lá qual é o problema?
DOENTE: Sotôr, acho que me anda a nascer uma licenciatura aqui no currículo…
MÉDICO (chega-se à frente, preocupado): Mas o senhor esteve na Universidade?
DOENTE (levemente enojado): Nááá, sotôr, até evito passar lá perto!
MÉDICO: É que, isso, anda aí uma epidemia e é preciso ter cuidado, homem! Mas como é que isso lhe apareceu?
DOENTE: Foi no outro dia, quando um secretário de Estado foi à minha terra inaugurar um pavilhão polidesportivo.
MÉDICO: Pois, isso dos polidesportivos é muito perigoso, estão cheios de correntes de ar. E então?
DOENTE: Então, cumprimentei o secretário de Estado, assim com um passou-bem, e começou a aparecer-me… aquilo… no currículo…
MÉDICO: E é claro que não foi desinfectar as mãos a seguir…
DOENTE (envergonhado): Pois não, sotôr.
MÉDICO: É de uma irresponsabilidade! É que anda aí uma doença terrível. (Pausa verdadeiramente dramática). É a curriculite.
DOENTE (assustado): A curriculite, sotôr?
MÉDICO (grave, profundo): A curriculite.
DOENTE: Isso dá no currículo, é?
MÉDICO: Exactamente, meu amigo. Uma pessoa está muito bem, passa perto de uma universidade ou de um político e aparece-lhe uma licenciatura no currículo. Por vezes,… (outra pausa ainda mais dramática que a anterior, para que a outra personagem intervenha, criando suspense)
DOENTE (intervindo para criar o suspense já anunciado): Por vezes, o quê, sotôr?
MÉDICO: Por vezes, há currículos que chegam mesmo a desenvolver mestrados ou doutoramentos…
DOENTE (apavorado): O quê? Pode lá ser! Ainda é pior do que eu pensava. Pode aparecer-me um doutoramento?
MÉDICO: É muito perigoso, meu amigo.
DOENTE: Mas há tratamento?
MÉDICO: Felizmente, sim. (Pega num frasco) Aqui está!
DOENTE: É de beber, sotôr?
MÉDICO: Isto, meu amigo, é para esfregar vigorosamente na cara todos os dias.
DOENTE: Mas é o quê, ao certo?
MÉDICO (compõe um ar exageradamente grave, para compensar a parvoíce que passou pela cabeça do dramaturgo): É um produto pouco usado: é… vergonha.
DOENTE: Vergonha na cara?
MÉDICO: Tal e qual.
DOENTE: E resolve?
MÉDICO: Às vezes, não vai a tempo. Ainda recentemente, foi preciso proceder à ablação de membros do executivo e teve de se mandar o governo todo para análises.
DOENTE: Mas, ó sotôr, diga-me uma coisa?
MÉDICO (poisando o frasco na mesa): Com certeza, diga, diga.
DOENTE: Se eu deixar estar a licenciatura no currículo e se não doer muito, acha que posso fazer parte do governo?
MÉDICO: O senhor não tem mesmo vergonha na cara, pois não?
DOENTE: Então, o sotôr ainda não me passou a receita.
Deliciosamente bom e mau, tudo ao mesmo tempo!
…..a doença de avíários……de canudos….no seu esplendor…..!!!!!
Parabéns, António Fernando Nabais. Merece ser antologiado. Só aqui falta um trocadilho com o bloco (operatório?) central. É que não consta que a curriculite afecte indivíduos de outras áreas político-ideológicas. (Mas também é verdade que esses não costumam ser secretários de Estado).
Soberbo!
Bom!