Lettres de Paris #35

Paris is a moveable feast

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escreveu Ernest Hemingway no seu quase diário dos tempos em que viveu nesta cidade. O romance só foi publicado depois da sua morte, em 1964, simultaneamente nos Estados Unidos e em França. Em França, tal como em Portugal, o título escolhido foi Paris est une Fête (Paris é uma Festa, no nosso país, editado pela Livros do Brasil, pelo menos é a edição que tenho há décadas, mas creio que foi recentemente reeditado). Na verdade, a moveable feast não é o mesmo que ser apenas uma festa, quer dizer, é uma festa sim, mas que nos acompanha onde quer que vamos desde que, claro, estejamos em Paris. Disse outro dia que ia comprar o livro na versão original ali na Shakespeare and Company. Ainda não o fiz, porém. Mas lembrei-me disto hoje, já de noite aqui em casa. Tinha, como tenho agora, a janela entreaberta. Apesar do frio que faz na rua, aqui dentro está muitas vezes um calor de ananases. Ouvi barulho de vozes na rua. Estou no primeiro andar e a rua é muito estreita, como também já contei.

Fui à janela, abri as duas portas e debrucei-me. Vejo um enorme aparato de luzes e tripés e pessoas e dois cães. Uma rapariga vestida com um longo casaco de peles está a ser maquilhada. O fotógrafo dá-lhe depois indicações, já com a rapariga no meio da estreita rua, com uns saltos agulha de para aí uns 15 centímetros e o casaco de peles. Aponta luzes, desvia luzes, pede ao maquilhador que vá retocar a cara – que a mim me parece perfeita – da rapariga. Fumo um cigarro a olhar para aquilo tudo, mas depois lembro-me que tenho de ir tirar a roupa do secador, na cave da casa. Quando regresso, mais a roupa, vou outra vez à janela observar os desenvolvimentos. Arrepio-me toda. A rapariga, de longos cabelos, reparo agora, está em lingerie de renda e cinto de ligas e meias de vidro até ao alto das coxas e sapatos altíssimos, no meio da estrada. Faz poses sexy no meio da estrada. Aproxima-se um carro e as luzes, a rapariga, o fotógrafo, têm de se desviar. Colocam tudo de novo nos seus lugares e a rapariga, lindíssima vista daqui de cima, continua a fazer poses sensuais no meio da Rue Suger. Aparece um táxi, mas para mesmo antes do aparato e leva uns bons 10 minutos a resolver-se a seguir. Compreende-se. Há pessoas que saem das grandes portas dos prédios e que ficam embasbacadas a olhar para a rapariga semi-despida em poses sexys e, muito provavelmente, a morrer de frio. Algumas poses depois o fotógrafo diz que ‘pour moi, c’est bon’. Vejo gratidão nos olhos da rapariga. Veste o casaco, arrumam as trouxas e provavelmente po(u)sarão noutra rua de Paris. A moveable feast.
Uma das coisas que mais gosto de fazer quando saio de casa para ir para o Ladyss é beber um café no Odéon. Se não chove, sento-me na esplanada e fico a ver as pessoas passar à minha frente. Sim, peoplespotting é um dos meus desportos favoritos, já se sabe. Mas em Paris, nesta praça, o peoplespotting atinge a perfeição. Gosto de admirar a elegância das mulheres. As roupas que vestem, o modo como andam. Gosto de observar também a elegância dos homens, mas devo dizer que, mais frequentemente, o seu ar desalinhado e encantador exatamente por esse desalinho. Os rapazes de barba e longos cachecois enrolados ao pescoço e as raparigas magras e leves, elegantes também como as senhoras. A moveable feast, sem qualquer dúvida, é Paris. Gosto também de ver as montras das lojas, as janelas das casas, as folhas das árvores que já vão sendo cada vez menos, os troncos e os ramos recortados contra os belos edifícios ou apenas contra o céu ora azul, ora cinzento. Gosto de ver as folhas amontoadas no chão, cheias de cores e depois ver os pombos e os corvos, cinzentos uns, muito pretos os outros, a desfazer aquilo tudo, como se fosse o desalinho dos homens franceses. Gosto de ver as estátuas, os grafitti, de encontrar poesia no meio das ruas, em cada esquina, em toda a parte. Gosto de transportar a festa que é Paris, comigo, quando ando pelas ruas do costume ou por outras, totalmente novas ou, pelo menos, desde há muito não percorridas.
Hoje, na ida para o Ladyss resolvi subir as escadinhas ao fundo da Rue Antoine Dubois, passei a estátua de Alfred Vulpian, neurologista e vi o primeiro gato de Paris. Quer dizer, o primeiro gato de Paris para mim, que ainda não tinha visto nenhum, nestes dias todos. Era preto e branco e tinha uma coleira vermelha com um guizo. Parou à entrada de uma porta grande e pos-se a miar… não consegui fotografá-lo com a maquineta pequenina porque, entretanto a porta abriu-se, sairam duas senhoras muito elegantes e o gato entrou a tilintar de contente. Subi as escadas e entrei na Rue Monsieur-le-Prince. Encontrei os grafitti já conhecidos e cheios de mensagens políticas e passei em frente da Sociedade dos Poetas Franceses. Que bonito, pensei e segui em frente mais um bocadinho até que me lembrei que hoje tinha imperiosamente de acariciar o dourado pé de Montaigne (ver carta #34), não pelos meus desejos, mas pelos de outra pessoa. Entrei na Rue Racine e desci até à Rue des Écoles, onde na Place Paul-Painléve, Montaigne me esperava, de perna cruzada, com o sapato em evidência. Cumprimentei-o, como de costume – Bonjour, Monsieur Montaigne – fiz-lhe uma festa no pé esquerdo e registei o seu ar apreciativo. O resto do caminho foi o do costume. Não costumo cumprimentar a sisuda estátua de Claude Bernard e hoje também passei por ela sem dizer um ai. O silêncio foi recíproco e lá segui pela Rue de Lanneau até à Rue Valette. Por ser sexta-feira, havia muitos risos e boa disposição no Ladyss. Parecia que as pessoas transportavam todas uma festa.
Na verdade acho que transportamos todos uma festa. Seja em Paris, onde será eventualmente mais fácil fazê-lo, seja em qualquer outro lugar. Talvez nos esqueçamos disso muitas vezes, que somos todos a moveable feast, apesar de tudo. Há dois sem-abrigo que costumo encontrar, um na Rue Cujas e outro na Rue Serpente, que estão sempre a rir-se e são muito simpáticos mesmo comigo que nunca lhes dou nada. Atendendo às suas circunstâncias, pode ser estranho que tanta festa transborde dos seus risos rasgados e com maus dentes. Mas transborda. E isso parece-me a mim tão ou mais bonito que a rapariga lindíssima que posava em lingerie vermelha de renda esta noite, na estreita Rue Suger, debaixo das luzes e das cores da maquilhagem.

Comments

  1. Nascimento says:

    Depois de tantos “retratos” que faz ( e bem), ainda vai voltar? E ainda não foi passear a Chartres ver os Vitrais!!!Ai a LUZ!!! Continue. De cada vez que leio estes Estados de Alma fico feliz. Nem imagina. Tou cansado desta merdaleja. Como dizia Almada: é tudo tão Pequeno…e t ão reacionário. Tuga. Ruizinho. Chapéu na mão . Curvado. Educadinho. E depois: PAULO MACEDO/s tudo sempre “normal”, com os mesmos de sempre a serem dados como SALVADORES DA PATRIA/ REGIME.
    Eu? Já não tenho hipótese. Hoje? Nunca mais aqui punha os pés. Nunca mais.

    • Bom, volto pois… que remédio. Mas ainda falta algum tempo. Ainda não fui a montes de sítios. Só tenho os fins de semana para passear e, infelizmente, sou noctívaga, o que quer dizer que me levanto um bocadito tarde e… anoitececada vez mais cedo. Mas hei-de ir, hei-de ir,

  2. Nascimento says:

    E já que está tão pertinho veja a Maison de Vitor Hugo ( Place des Vosges), naõ paga ao Domingo. E que dizer do RETRATO DE NADAR???Uau..

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