Lettres de Paris #49

L’amour gagne toujours

estava escrito ontem (hoje também deve lá estar e deverá continuar por muito tempo, presumo) numa parede da Rue Guy Môquet. Paris é uma cidade romântica ao que dizem, é natural que assim como ‘l’amour court les rues’, como escrevi numa carta anterior, se pense por aqui que ‘l’amour gagne toujours’. Mas ganha sempre sobre o quê, afinal? O que há a ganhar ou a perder, senão, neste caso, um pouco de romantismo. E falo de romantismo naquela acepção lamechas, ‘boy meets girl’ e por aí a fora. Sendo certo que, nesta acepção, o amor não ganha nunca. Porque não há nada a ganhar primeiro, outra vez e depois, porque o amor acaba, como é evidente e próprio das coisas, acabar. Mais tarde ou mais cedo, há-de acontecer. Antes tarde que cedo, é preciso que se acrescente. Na outra acepção mais abrangente do amor, também é verdade que ele não ganha sempre porque, mais tarde ou mais cedo, também, morreremos.
 
Não estou muito bem disposta como se notará. Estou mesmo rabugenta, como os que me conhecem melhor, repararão certamente. Adormeci às 5 da manhã, sonhei que a sanita começava a deitar cada vez mais água até acordar com a cama a boiar no quarto e com a Maison Suger alagada de água sanitária, mal cheirosa. Acordei com pessoas a baterem-me à porta ainda não eram 10 horas. Era o senhor da manutenção. O tal que ontem devia ter vindo, mas não veio porque morava longe. Estava o diretor da Maison e a secretária e entrou tudo pelo estúdio adentro, mais exatamente pela casa de banho adentro. Monsieur le directeur propôs-me mudar para um estúdio gigante, aqui no mesmo patamar. Fui ver o estúdio e só de pensar que tinha de lavar a louça toda outra vez antes de a usar se me revoltou o meu estomago ainda sem pequeno almoço. Disse-lhe que sim, bom, se não houver outra solução, claro. Não podia ficar num sítio onde não se pode usar a sanita, bem entendido. Resta dizer que tirando isso, o resto da casa de banho estava perfeitamente funcional.
 

O problema era então na casa da vizinha do lado. Afetava 6 estúdios. Uma coisa sem explicação. Vim para dentro do estúdio, eles ficaram entretidos na casa de banho da vizinha. Passadas várias horas nada de solução. Usei a casa de banho do apartamento gigantesco, claro. Quando saí, já muito depois da hora do almoço, sem que o problema estivesse resolvido, achei que era melhor apanhar ar. Beber café. Ir ao cinema. Estava cansada. Estou cansada. Ao sair, estão a entrar o que presumo serem canalizadores profissionais, com umas máquinas estranhíssimas e uma grande camionete estacionada na rua estreita a bloquear a passagem. A rua estava aliás cortada na parte onde se encontra com a Rue de l’Èperon. Tudo isto por causa de uma sanita entupida no estúdio da vizinha que arrastou consigo mais 5 sanitas em toda a Maison Suger! Sim, senhor, pensei.
 
Apanhei frio numa esplanada, cheia de gente, com o café e um ou dois cigarros. Depois fui ao cinema no Boulevard Saint-Germain, a um mk2. Fui ver Cigarettes et chocolat chaud*, um título que é quase uma cópia de uma música do Rufus Wainwright**, de que gosto muito. É um filme fofinho, divertido, amoroso no qual, sim, l’amour gagne toujours, a la fin. Saí do cinema enternecida com a história, mesmo se a história é lamechas, sbre o amor no sentido mais lato do termo. Estava imenso frio quando saí do cinema e soube-me bem entrar na Maison Suger. Estava outro guarda da noite a quem perguntei se ele sabia se estava tudo arranjado finalmente. ‘Oui Madame, tout est reglé’. Fiquei satisfeita e mais satisfeita ainda quando, ao entrar no estúdio me cheirou a lexívia e a outros detergentes e constatei que a casa de banho estava praticamente imaculada. Abençoados que resolveram chamar alguém competente. A competência é que ganha sempre, não o amor, seja ao trabalho, seja à camisola, seja a quem quer que seja. Sendo que, para amar, também é necessária competência, bem entendido.
 
Trabalhei umas quantas horas, quentinha e mais animada, apesar de estar ainda cansada. Estou cansada. Estava aqui há bocado com uma frestazinha da janela aberta e ouvi um rapaz gritar: ‘il neige! Il neige!’… levantei-me da secretária num ápice e abri a janela completamente, numa excitação. Mas qual neige?! Não nevava nada. Caraças do rapaz. Nem um floco caiu. Meti-me para dentro antes que congelasse, e continuei a trabalhar. Quando fui jantar continuava sem nevar. Aliás tem feito um tempo magnífico em Paris para esta altura do ano. Pouco tem chovido nestes quase dois meses. E o frio é mais ou menos suportável, sobretudo desde que tenho a ‘doudoune’. Super eficaz contra o frio. Portanto, não é o amor que ganha sempre. É a eficácia. Mesmo porque até no amor é necessário ser eficaz.
 
Estou pouco confiante hoje. Em mim, nos outros e até na sanita. Pode não parecer pelo modo rápido, competente e eficaz com me levantei da cadeira quando o rapaz, na rua, gritou ‘il neige!’. Mas acho que a qualquer momento vou ouvir uns gorgolejos e acordar com a cama a boiar no meio da água, no meio da Maison Suger, no meio de Paris, qual bateau mouche no Sena. Bem sei que é preciso ter confiança, nas situações, no futuro, em nós, nas outras pessoas. É difícil. Mas a confiança é que ganha sempre, afinal.
 
 
**https://www.youtube.com/watch?v=i6N0sNMKFO4

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