A máquina do tempo: Bon colp de falç! – a Restauração portuguesa e a Catalunha (1)

 

(Texto de Carlos Loures e Josep Anton Vidal) 

 

Faz amanhã 369 anos, em 1 de Dezembro de 1640, Portugal recuperava a sua independência perdida 60 anos antes. Todos sabemos, até aos mínimos pormenores, como foi esse dia «em que valentes guerreiros / nos deram livre a Nação». Interessante que os catalães têm a ideia de que lhes devemos a libertação do jugo estrangeiro. E afirmam que foi o facto de os castelhanos terem de deslocar tropas para a frente catalã que nos permitiu, apanhando os ocupantes fragilizados, restaurar a independência. Independência que, formalmente, sempre conservámos, embora com um rei estrangeiro no trono.

 Em parte, isto é verdade. Mas só em parte. Tal como só em parte é verdade que tenham sido os conjurados, os «valentes guerreiros que nos deram livre a Nação», como se canta no tal hino escrito para uma peça teatral em 1861, por Eugénio Ricardo Monteiro de Almeida (1820-1869) numa visão romântica de uma realidade bem mais dura. A letra parece ter sido escrita por plumitivos ao serviço do regime salazarista. Regime que aliás aproveitou o hino e o tornou coisa sua, com honras especiais na organização para fascista da «Mocidade Portuguesa». Hoje, o hino é trauteado, como vamos ouvir no vídeo abaixo, pelas populações raianas. A música ficou, mas a letra foi esquecida, como merecia coisa tão rebuscada e falsa. Tipicamente romântico e falseador da realidade é também o quadro de Veloso Salgado (1864-1945) que vemos acima. Sabemos ser impossível expurgar a História de todos os mitos. Mas podemos, pelo menos, tentar libertá-la de alguns deles.

 

A verdade completa é um pouco diferente da versão catalã e dos mitos românticos que se forjaram em Portugal no século XIX. Em síntese, a verdade é que durante 28 anos aguentámos uma guerra que mobilizou desde rapazes de 16 anos a velhos à beira da cova, deixando os campos abandonados, trabalhados por mulheres e crianças, e que nos obrigou a fundir os sinos das igrejas para fabricar canhões, a desviar para o esforço de guerra os parcos recursos de uma economia débil. Construíram-se ao longo da fronteira sólidas fortalezas que ainda hoje estão em bom estado de conservação. Contrataram-se técnicos militares estrangeiros para reorganizar um exército desmantelado ou articulado de acordo com os interesses do invasor – oficiais, engenheiros… Tivemos alguma ajuda francesa,  algum apoio inglês, mas a pior parte foi feita por nós. A vitória em batalhas como as de Montijo (1644), Linhas de Elvas (1659), Ameixial (1663) e Montes Claros (1665), foi um factor decisivo.

Ganhámos a guerra. Ao fim de quase três décadas e de milhares de mortos, das cidades e vilas raianas devastadas pelas frequentes incursões inimigas, ganhámos e a nossa independência foi reconhecida. Porém, hoje queria ocupar-me da parte em que os catalães têm razão. De como a «Revolta dos Ceifeiros» e a guerra que se lhe seguiu nos ajudou. Porque quando aqui dizemos que na Catalunha se ignora tudo o que a Portugal diz respeito, manda a verdade que se diga que, para a maioria dos portugueses, a Catalunha é uma província de Espanha. Ponto final. Vou, pois, em breves palavras, contar a quem não sabe, a história dessa sangrenta revolta, coisa que os meninos na Catalunha conhecem bem, mas de que a maioria dos portugueses nem sequer ouviu falar. Para pilotar a nossa máquina do tempo pela história da Catalunha adentro, pedi ajuda ao meu amigo Josep Anton Vidal. Este texto é da autoria de ambos. Vamos ver como as coisas ocorreram na Catalunha.

*

Em 1635, a França encetava a uma nova fase da guerra contra os reinos da Casa de Áustria, os Habsburgos, que dominavam grande parte da Europa, para além das colónias da América, de África e da Ásia. O sol nunca se punha na vasta parte do mundo dominada por Castela e essa grandeza sufocava a pretensão francesa de hegemonizar a Europa militar e economicamente. Era a chamada Guerra dos Trinta Anos que começara em 1618. No entanto, apesar da paz de Vestefália assinada em 1648, a guerra prosseguiria entre os dois estados até 1659, quando se assinou o tratado dos Pirenéus. Este prolongamento por mais doze anos da guerra dos Trinta Anos teve como cenário e motivo a Catalunha.

Por outro lado, esta guerra com a França veio evidenciar as fragilidades do gigante castelhano, minado pelo próprio gigantismo das suas estruturas e sobretudo pela corrupção que o afluxo de ouro e prata, proveniente da América, criando fortunas rápidas e fáceis e a quebra no valor dos metais preciosos, geraram uma crise profunda que o conde-duque de Olivares, chefe do governo, procurava enfrentar impondo medidas drásticas nos reinos submetidos. O astuto governante pusera em marcha uma política destinada a recuperar o esplendor da monarquia, ameaçado pela decadência, reforçando o poder do soberano nos reinos peninsulares e na Europa.

A carga fiscal aumentara em Castela e a sua política belicista, que o levou a envolver-se numa guerra pela hegemonia europeia, exigia uma repartição dessa carga fiscal e do esforço militar por todos os reinos da Península. Porém, a legalidade de cada reino constituía um obstáculo a essa política. Porque, quer Portugal, quer a Catalunha, Aragão ou Valência não tinham perdido formalmente a independência. O que acontecia era que o rei era o mesmo – o de Castela e imperador das Alemanhas. Em Portugal, desde Filipe I (II de Castela) havia o compromisso de respeitar os «foros e privilégios» do Reino.

Na Catalunha e outros reinos, acontecia o mesmo. Daí a urgência de unificar as leis e alinhar os direitos desses reinos pelos de Castela. No fundo o que Olivares pretendia era acabar com a independência teórica dos reinos que compunham o Império da Casa de Áustria, centralizar de uma vez por todas as decisões em Madrid. Já em 1625, em carta ao rei, o conde-duque dissera que o monarca não deveria contentar-se em ser rei de Portugal, Aragão e Valência, conde de Barcelona; deveria esforçar-se por «levar a esses reinos as maneiras, as leis e os costumes de Castela». Numa palavra, deveria aniquilar a independência formal, centralizar, castelhanizar. A Flandres aceitou essas medidas que impunham o recrutamento forçado de soldados para a guerra com a França. A Catalunha e Portugal recusaram liminarmente o agravamento dos impostos e o recrutamento adicional, plano de reestruturação militar a que Olivares chamou a «União de Armas».

Em suma, de um ponto de vista formal, não se tratava de recuperar a independência, pois quer Portugal, quer a Catalunha nunca a tinham perdido até então. Filipe I, fora dentro da linha sucessória, o herdeiro legítimo do trono de Portugal. O mesmo acontecera na Catalunha, onde os Áustria cingiam legitimamente a coroa condal. Olivares, porém queria alterar as regras do jogo e foi neste clima, em que as diversas legalidades colidiam com os interesses de Madrid e a sua supressão parecia inevitável, que os conflitos eclodiram.

Nas Cortes Catalãs de 1626, que o rei abandonou antes do encerramento e sem ter obtido qualquer acordo, as instituições recusaram as obrigações impostas pela União de Armas, n
eg
ando-se igualmente a aceitar exigências que colidiam com a legalidade catalã (Els Usatges). Voltou a fracassar a ofensiva de Olivares quando as Cortes foram reatadas em 1632. Nesta altura, Olivares recorreu a uma artimanha: tentou usar a legalidade catalã para a aniquilar: mercê do usatge “Princeps Namque”, era concedido ao conde de Barcelona (soberano do país), o direito de chamar às fileiras os súbditos em defesa do território. Porém as instituições catalãs mantinham a argumentação de que sendo essa potestade exclusivamente destinada à defesa do Principado da Catalunha, não era legítimo usar as forças assim constituídas para atacar outros territórios. Portanto, constituído um exército com recurso a essa lei, não podiam as tropas ser empregues noutro fim que não a defesa, nem podiam sair do território.

Este argumento levou Olivares a deitar mão a um estratagema militar para forçar o recrutamento dos catalães, desencadeando operações militares contra os franceses junto das fronteiras da Catalunha. Assim, em 1637,desencadeou a campanha de Leucata, no Languedoc francês. A campanha redundou num desastre para as tropas de Filipe IV (III da Catalunha e de Portugal). Embora as unidades catalãs se tenham recusado a abandonar o território, o grosso do exército de Olivares ocupara a Catalunha e, acabada a desastrosa campanha, permaneceu no país. A permanência do exército, obrigava ao «aboletamento», ou seja, a população civil era obrigada a acolher os soldados, proporcionando-lhes alojamento – sal, vinagre, fogo, cama, mesa e roupa lavada. Aqui acabava a obrigação legal – as demais despesas tinham de ser pagas pelos soldados. Porém, na prática, as coisas eram mais complicadas, pois não se estipulava durante quanto tempo tinham os civis de garantir o aboletamento, nem o número de militares que tinham de ser acolhidos em cada casa. Dado este vazio legal, os soldados impunham a lei com a arbitrariedade que se pode imaginar.

Os camponeses eram obrigados a cuidar e a alimentar as montadas e, inclusivamente, tinham de pôr à disposição do exército os seus próprios animais de montada e de tiro. Destas obrigações estavam dispensados os nobres, os clérigos e os cidadãos. Pelo que o peso recaía por inteiro sobre a população rural, fustigada pela precariedade das colheitas. O aboletamento vigorava desde 1626, mas a partir da campanha de Leucata a situação foi tornando-se cada vez mais insustentável.

Em Janeiro de 1640, Olivares quis agravar as obrigações do aboletamento, de modo que a população civil (e rural), assumisse também a manutenção da tropa, ou seja, os custos da sua alimentação e pagasse, sem direito a qualquer reembolso ou compensação, as despesas dos soldados. Esta situação de violência e abuso crescentes sobre a população, particularmente da rural, criou um clima de tensão que atingiu o clímax na Primavera de 1640 e levou à mobilização dos camponeses que se organizaram de acordo com as formas tradicionais de defesa (escaramuças, ataques de surpresa…) e constituíram um exército de populares que conseguiu expulsar as tropas de alguns territórios, empurrando-as para o Rossilhão. O levantamento atingiu Barcelona em Maio de 1640. Na capital, libertaram algumas autoridades, mandadas encarcerar pelo vice-rei, por terem encorajado à resistência contra o aboletamento. Foi neste contexto que eclodiu a sublevação do Corpus de Sang.

 

 (Continua)

 

Comments

  1. Carlos, serviço público de grande nível!

  2. O Sá-é-o-Maior says:

    oH lUIS viva madrid, de madrid al cielo..odeio os catalães odeio esses sangue sugas..que trabalhem mas que nao suguem madrid..nunca vi tanto cinismo e sobrolho como na Catalunha….têm a mania….!!!

  3. Dalby, tu não percebes nada de Espanha. Quem suga é Madrid. A Catalunha é responsável por mais de metade do PIB espanhol.

  4. o mais bem educado e meigo do clube says:

    Mas olhe que não luis olhe que nao!!!

  5. Se me permite gostaria de deixar aqui as quadras originais; Lusitanos, é chegadoO dia da da redempçãoCaem do pulso as algemasRessurge livre a naçãoO Deus de Affonso, em OuriqueDos livres nos deu a lei:Nossos braços a sustentemPela pátria, pelo reiÁs armas, ás armasO ferro empunhar;A pátria nos chamaConvida a lidar.Excelsa Casa, BragançaRemiu captiva nação;Pois nos trouxe a liberdadeDevemos-lhe o coração.Bragança diz hoje ao povo:”Sempre, sempre te amarei”O povo diz a Bragança”Sempre fiel te serei”Ás armas, ás armasetc, etc…Esta c´roa portuguezaQue por Deus te foi doadaFoi por mão de valerososDe mil jóias engastada.Este sceptro que hoje empunhas,É do mundo respeitado,Porque em ambos hemispheriosTem mil povos dominado!Ás armas, ás armasetc, etc…Nunca pode ser subjeitaEsta nação valerosa,Que do Tejo até ao GangesTem a história tão famosa.Ama-a pois, qual o merece;Ama-a, sim, nosso bom reiDos inimigos a defende,Escuda-a na paz, e lei.Ás armas, ás armasetc, etc…o link da obra – libreto. O livro é constituido por 3 peças, sendo a ultima a que interessa. Na página 84 começa a letra do hino:http://books.google.pt/books?id=wP8RAAAAYAAJ&dq=1640+ou+a+restaura%C3%A7%C3%A3o+de+portugal&printsec=frontcover&source=bl&ots=rQ69S2gziN&sig=TGMZKWQX1nHva_vd2N7GK1Ux4Bw&hl=pt-PT&sa=X&oi=book_result&resnum=1&ct=result#v=onepage&q=&f=falseum link da partitura:http://santossantinhos.blogspot.com/2008/12/partitura-do-hino.htmlum link de uma consideração alargada:http://santossantinhos.blogspot.com/2009/12/musica-eugenio-ricardo-monteiro-de.htmlObrigado.

  6. Bartolomeu, agradeço muito o seu enriquecedor comentário. A letra fascistóide a que me refiro no texto é aquela que se aprendia na MP e que era diferente. Esta, que não conhecia, é típica do período em que foi escrita, não reflecte a verdade histórica 8como eu a vejo), mas é mais genuína. Em futura divulgação deste texto, não deixarei de incorporar a sua valiosa ajuda. Muito obrigado.

  7. Dei-me conta entretanto que o Copy Paste subtraiu as ultimas quadras. Seguem agora as mesmas na integra. Obrigado.Lusitanos, é chegadoO dia da da redempçãoCaem do pulso as algemasRessurge livre a naçãoO Deus de Affonso, em OuriqueDos livres nos deu a lei:Nossos braços a sustentemPela pátria, pelo reiÁs armas, ás armasO ferro empunhar;A pátria nos chamaConvida a lidar.Excelsa Casa, BragançaRemiu captiva nação;Pois nos trouxe a liberdadeDevemos-lhe o coração.Bragança diz hoje ao povo:”Sempre, sempre te amarei”O povo diz a Bragança”Sempre fiel te serei”Ás armas, ás armasetc, etc…Esta c´roa portuguezaQue por Deus te foi doadaFoi por mão de valerososDe mil jóias engastada.Este sceptro que hoje empunhas,É do mundo respeitado,Porque em ambos hemispheriosTem mil povos dominado!Ás armas, ás armasetc, etc…Nunca pode ser subjeitaEsta nação valerosa,Que do Tejo até ao GangesTem a história tão famosa.Ama-a pois, qual o merece;Ama-a, sim, nosso bom reiDos inimigos a defende,Escuda-a na paz, e lei.Ás armas, ás armasetc, etc…Ai! Se houver quem já se atrevaContra os lusos a tentar,O valor de um povo heróicoHade os ímpios debellar.Viva a Pátria, a liberdade,Viva o regime da lei,A família real viva,Viva, viva o nosso rei.Ás armas, ás armasetc, etc…

  8. Bartolomeu, não sei se viu a 2ª parte do texto. Inclui-se do hino catalão as duas versões, a oficial e a genuína, com letra do século XVII em que se descreve a «Guerra dos ceifeiros». Embora a letra que me revela não seja coeva relativamente aos acontecimentos, sempre é mais genuína do que a que aprendi. Pena é que não exista uma gravação. Muito obrigado pela rectificação.

  9. Ja vi, e anotei.À imagem do canto catalão, certamente no tempo da 1640 existiram cantares de rua que comentavam a Restauração. Algo que em tom de cantilena, lenga-lenga, etc… que narravam a par e passo os principais acontecimentos envolvendo os principais protagonistas ou um herói ou anti-herói; algo que se manteve apenas no registo da oralidade; algo que não foi recolhido a não ser num diário, carta, crónica ou almanaque (se é que este conceito já existia); algo que desapareceu como muitas memórias no terremoto de 1755, nessa quase tábua rasa patrimonial. Há sempre uma probabilidade.

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