Fim da Linha

(adão cruz)

Texto de Marcos Cruz

Será que os pássaros vivem a crise? Será que há menos gente a dar-lhes migalhas nos jardins? E todos os outros animais? Será que partilham as angústias do Homem sobre o estado do mundo? Será que sofrem de forma indirecta? Pelo que me é dado ver, não. A generalidade dos animais ditos não racionais habituou-se a viver em liberdade, coisa de que o Homem, no exercício da razão, quis prescindir. Cioso da sua mais-valia, despediu-se da cadeia de ADN global para se fazer a uma vida destacada, para escrever uma história acima do universo, mero contexto, paisagem, folha lisa. Capítulo após capítulo, encontra-se hoje perante a realidade irrefutável de ter criado um Deus à sua imagem, chamado dinheiro, Deus esse que, cada vez menos, por ser filho de um Homem desligado, de um recorte físico do infinito, está em todo o lado. Ora, se a ideia de que a salvação e a felicidade se baseiam na posse é hoje do domínio da lógica, do código subjacente à vida da espécie, há então que lutar com unhas e dentes por esse Deus. A este raciocínio interpõe-se, no entanto, um problema: o que fazer com as pessoas que se sentem felizes sem possuir ou querer possuir a dita felicidade? Pois excomungá-las, atirá-las para outra espécie, uma espécie inventada, uma espécie nova, que, tendo em conta a teoria evolucionista, quem sabe justificaria a reciclagem do termo super-homem. Hum…, não, não faria sentido evocar anacronicamente uma estrutura mítica cuja falência teve, aliás, expressão retumbante na realidade. Fosse ele um pássaro, como admitia a célebre pergunta dos homens que o viam pela primeira vez a rasgar os céus, e ainda andaria aí, imune à crise, mesmo que não a salvar pessoas, mesmo que não a aliar-se ou a substituir-se ao Deus dinheiro. Mas, enfim, talvez lhe assentasse bem a designação de supra-homem, um “supra” ligado à superação, à sublimação, à transcendência – uma transcendência inclusiva, porém, não uma transcendência irresponsavelmente mística, magicamente religiosa. Cumprida essa limpeza, deixada a nova espécie ao sabor dos pássaros, aprendendo a voar, a ser livre, o Homem poderia retomar a escrita da sua obra-prima, do seu grandiloquente livro técnico, sem romance, com menos personagens e mais Deus disponível para cada uma delas, e tirando proveito de, através do erro, ter aprendido uma lição extraordinária, imprescindível ao desejado final feliz: reprodução, jamais.

Comments


  1. «Será que os pássaros vivem a crise?» Com o declínio das pescas e o desaparecimento das lixeiras municipais de que acha que vivem as gaivotas? Venha a Lagos e verifique como vivem hoje essas aves. Dirá, são aves quase “domésticas” que registaram crescimento desmesurado das sua colónias pela facilidade de subsistência que a proximidade das comunidades humanas lhes proporcionaram. Mas será isso uma excepção no reino animal, ou antes a regra?! Não acontece o mesmo com outras aves às quais retiraram o habitat rural, as florestas e as montanhas? E esse impacto não é sentido por muitas outras espécies de animais?

    Claro que os animais sentem a crise, já a sentem há mais tempo do que os “cegos” humanos que cavam inconscientemente a sua sepultura.


  2. Penso exactamente assim

  3. graça dias says:

    “Será que os passsaros vivem a crise? “: Vivem – ficam presos e perdem as penas

  4. julia says:

    Caro Amigo:
    Com muita mágoa, confirmo que a maioria dos pássaros sentem a crise.Sublinho as andorinhas- visitavam-me e “alugavam-me” todos os anos o beiral,da casa da aldeia.
    Fiquei triste quando vi o beiral com os ninhos destruidos, assim como na maioria das casas.
    Fui visitar amigos em Fornos- Freixo-de Espada-à-Cinta e encontrei a mesma destruição.
    Justificação dos habitantes:sujam as paredes e não
    estamos para pintar as casas.Alguns até deram uma receita “eficaz”:pintar uma barra PRETA, em todo o beiral.Elas repelem o preto…
    A natureza está sendo destruída, mas ela se encarregará do Homem…
    Até amanhã! Até sempre!
    Júlia Príncipe