Discussão recorrente foi, nos anos sessenta e setenta, a da dicotomia entre forma e conteúdo. Bati-me sempre pela prevalência do conteúdo, sendo da opinião que «o que se diz» é mais importante do que «como se diz». Mas não era, nem é, uma opinião compartilhada pela maioria dos escritores e artistas. Segundo eles, a arte constitui uma linguagem autónoma, independente da realidade do quotidiano, vale por si mesma. É uma posição respeitável. Entretanto, particularmente na literatura, foi vingando um tipo de escrita enovelada sobre si mesma. Os poetas e escritores, sem liberdade de expressão, jogavam com as palavras e, às vezes, no meio de uma floresta de palavras descobria-se um significado. É contra esse tipo de escrita (e de arte) que este poema, escrito por esses tempos, mas apenas publicado em 1990 em O Cárcere e o Prado Luminoso, se batia. Uma arte ligada à vida e à realidade é o que pretendo defender com esta Natureza morta:
Olhando a natureza morta,
frias laranjas dormindo
numa fruteira inerme,
silenciosa,
que o azul cerúleo recorta
na quadrícula branca
da janela,
recuso a natureza
assim estagnada,
sem dentes, sem fome, sem desejo,
sem nada que triture as laranjas:
sem dedos que a esmaguem,
nem crianças que partam
a puta da fruteira;
sem sequer um grito de revolta
que trespasse a gélida fronteira
entre a morte e o silêncio
emoldurados
e a vida que se agita,
grita, ruge e dói
deste lado de cá
da maldita moldura.
Recuso a natureza
pálida, parada,
sem aves, vento ou sons
que sulquem o azul do céu
desta natureza, assim
tão contra-natura
como a que assassinada
a tiros de pincel,
jaz fria, morta e enterrada
na tela e nas cores
desta pintura
E que tal iniciar essa discussão no seio da blogosfera?
Haja quem comece!