A máquina do tempo: David Mourão-Ferreira

 

David Mourão-Ferreira é um escritor muito conhecido, muito falado, com muitos estudos e numerosas teses académicas sobre a sua obra. Não faria muito sentido estar aqui a glorificar os seus livros, a sua poesia. Há um pormenor, que me leva a subir para a minha máquina, a voltar uns anos atrás e ir ao encontro da recordação que dele conservo – a amizade. Sempre me tratou com amizade e eu era muito amigo dele. Por isso, não tecerei elogios à sua obra – deles não precisa – outros o fizeram e o farão melhor e com maior autoridade. Falarei um pouco da sua grande amabilidade, da generosidade que era nele uma segunda natureza.

 

Embora tenha sido director do serviço da Fundação Gulbenkian em que trabalhei durante dez anos, não nos cruzámos ali, pois saí em 1971, quando o director era ainda Branquinho da Fonseca. Conhecera-o na Faculdade de Letras, estive com ele em reuniões da Associação Portuguesa de Escritores; era uma relação cordial, mas mais ou menos formal.

 

 

Quando lancei o meu primeiro romance, «Talvez um Grito», dado que ele fizera parte do júri que o distinguira, fui à Gulbenkian pedir-lhe que fizesse a apresentação que seria no Solar do Vinho do Porto – imediatamente se disponibolizou, sem qualquer espécie de hesitação. Fez uma apresentação magnífica, que tenho gravada em vídeo (mas num standard que já se não usa, o Beta, e não sei se a conseguirei recuperar), lendo da forma expressiva que o caracterizava, e valorizando-as, como só ele sabia, algumas das páginas do livro.

Fomo-nos encontrando, almoçámos algumas vezes na Gôndola, um restaurante que ficava perto do meu escritório, na Av. António Augusto de Aguiar e a poucos passos do edifício da Gulbenkian onde estava instalada a direcção do Serviço de Bibliotecas. Num desses almoços, propus-lhe que dirigisse uma história da literatura portuguesa (não pôde aceitar, pois estava com mil e um compromissos, mas forneceu-me uma série de pistas de grande utilidade). Na Primavera de 1996 encontrámo-nos casualmente no restaurante do Hotel Continental – eu não o reconheci, pois estava muito magro, quase calvo, acabava de chegar de uma clínica de Londres,  desfigurado pela doença e pela quimioterapia. Estávamos costas com costas e ele chamou-me. Disse-me sorrindo que a sua vida estava por dias ou por semanas. Protestei e ele continuou a sorrir. Fiquei devastado. Em Junho morreu.

Fui à maldita Basílica da Estrela, onde o corpo estava em câmara ardente. Não sei por que motivo os escritores ali vão sempre parar (o Palácio Galveias não seria mais adequado?). Não era o caso do David, mas, por exemplo, o Orlando da Costa e o Luiz Pacheco, comunistas e ateus, numa basílica… A nora, a ex-apresentadora da RTP, Margarida Mercê de Mello, leu alguns poemas dele. Um era muito comovente, dizia: – «Há-de vir um Natal e será o primeiro/ em que se veja à mesa o meu lugar vazio…» No cemitério dos Prazeres, Amália (com a qual abri este post, cantando uma canção com letra de Mourão-Ferreira), chorava copiosamente.

David Mourão-Ferreira, um grande poeta, um grande professor e intelectual. E, acima de tudo isso, um homem de uma excepcional e humana capacidade de ser generoso.

Um bom amigo.

Deixo-vos com o seu poema «A Secreta Viagem», muito bem interpretado por António Moreira da Silva.

 

 

 

Comments

  1. Com os seus magníficos poemas, a sua voz poderosa e o seu cachimbo.

  2. E com o seu enorme talento.

  3. maria monteiro says:

    Particularmente atrevo-me a dedicar esta homenagem de David Mourão-Ferreira a Inês Tavares Rodrigues, escritora, professora, neta de dois grandes escritores, amiga  e… leitora do Aventar 1grande abraço bjs maria+tomás

  4. Está dedicado, Maria Monteiro. Com um abraço.

  5. Pelo nome da sua amiga, presumo que será neta do Urbano Tavares Rodrigues e da Maria Judite de Cravalho. Tenho muita consideração pelo Urbano. A Maria Judite, não cheguei a conhecer.

  6. Rectificação: Maria Judite de Carvalho, a autora de «Tanta Gente, Mariana».

  7. maria monteiro says:

    sim… é essa a nossa Inês

  8. Inês Tavares Rodrigues says:

    Grande beijinho, Maria, e um outro, muito sem-tamanho, ao NOSSO Tomás!!!!!

  9. maria monteiro says:

    Obrigada, Inês, e agora… esperamos por alguns posts bjs m+t

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