Croniquetas de Maputo: o lixo e a chuva

Uma das primeiras coisas que nos assalta os sentidos, em Maputo, é o lixo. A visão do lixo, o cheiro do lixo, o cuidado com o lugar onde se põe o pé. A cidade não está preparada para lidar com o lixo que produz, a política de recolha e transformação é quase inexistente, os raros contentores parecem ter sobrevivido em mau estado a campanhas sucessivas no Iraque, no Afeganistão, na Líbia, nos campos de treino de uma escola para bombistas, amolgados, retorcidos, a tombar para os lados. Servem como mera indicação de uma zona geográfica em volta da qual se acumulam quantidades enormes de lixo. Não é raro, de dia ou de noite, encontrar lixo a arder, contentores em chamas, fumo negro toldando pequenas zonas da cidade. Outras vezes sentimo-lo à distância pelo cheiro de mil e uma coisas diferentes em combustão simultânea.

Em alguns locais, em algumas ruas, o lixo vai-se acumulando sobre o lixo, pessoas e automóveis pisam-no e compactam-no, nivelam-no, entupindo escoadores e valetas, tapando buracos aqui e ali. Os pobres dos pouquíssimos trabalhadores dos serviços de recolha, desprovidos de meios, acompanham camiões de lixo que há muito deixaram de ser basculantes, colocam um lençol de plástico no chão e vão empilhando lixo sobre ele, depois levantam-no, balançam-no uma, duas, três vezes e upa, lá vai o lixo pelo ar, parte dele não alcança o camião e cai-lhes em cima, pobres, pobres trabalhadores, tarefa tão aparentemente inglória.

Há poucas semanas o fim de tarde estava pesado, suava-se em bica, a humidade no ar tornava o corpo pegajoso, a roupa colava-se à pele, as cervejas geladas saíam pelos poros à medida que se bebiam quando, finalmente, choveu. Choveu durante a noite como se o céu fosse, todo ele, feito de água e tivesse a terra como destino.

Acordei com a chuva e pus-me a imaginar todo aquele lixo da cidade a ser levado em direcção à baía, a espalhar-se mar fora, parte dele a dar à costa noutro lado, em Catembe, na Matola, na Macaneta, a depositar-se nas praias, nas carcaças dos barcos semi-afundados à espera de remoção, nas rochas cobertas de objectos de plástico, e percebi que vão ser precisas gerações para limpar tudo o que hoje sujamos, que vão ser precisos meios, que é urgente resolver o problema do lixo, não apenas em Maputo, mas em grande parte do (terceiro) mundo.

No dia seguinte, porém, a cidade (quer dizer, a cidade de betão, a cidade asfaltada) despertou limpa e lavada, a cheirar a fresco, o ar estava mais leve e a magia, a atraente magia de Maputo, acreditem, esteve durante dois ou três dias mais brilhante.

Barcos em Catembe

lixo em Catembe

Comments


  1. Porreiro, pá

    não sei quem é o PÁ mas gostei, pá
    andei por aí uns anitos – mais pelo Norte, é certo –
    gostei da sua escrita

    o amigo é um tipo lixado, anh!

    um abraço aqui do frio

  2. Carlos Fonseca says:

    Seria preferível o ‘luxo’ e o ‘Chiva(s)’. Olha contenta-te e que, de noite, venha muita chuva para levar o lixo. E Quanto a luxos, umas bejecas e um frango à cafreal já é um acasalamento sumptuoso.
    Um abraço

  3. maria celeste ramos says:

    a PRIMEIRA VEZ QUE FUI AO MAPUTOP (E TODO O PAIS) a capital estava tão limpa e nem uma lâmpada de iluminação urbana estava fundida ou suja como estão nos candeiros urbanos de lisboa – mas lisboa é de facto e agora a maior lixeira de sempre e de tapumes – e de graffittis de que vi hoje em reportagem TV trabalho da cml para tentar apagar – fora o resto – lisboa é muito suja – nem a Troica comenta ?? !! num país considerado LIXO

  4. Carla Romualdo says:

    estou a gostar muito destas “croniquetas”, Pedro. Esta fez-me lembrar um conto muito breve do Mia Couto (se não estou em erro chama-se “lixo, lixado”) sobre um homem que vivia na lixeira com o seu animal de estimação, um porco.