Não deixa de ser interessante que, em antecipada pré-campanha para as autárquicas, comecem a ser revelados alguns pecados da actual gestão em algumas autarquias. Uns, veniais, coitadinhos; outros, cabeludos como o diabo.
Mas não deixa de ser interessante, também, a forma como o vulgo reage às notícias.
Estava eu integrado, por vizinhança, numa conversa de café, daquelas que surgem ao cair da bica (minha singela homenagem ao linguajar da capital) quase sem nos darmos conta. Está-se a falar do tempo, da bola, das pernas da Maria, e, de repente, é um refastelar de críticas à política.
Raramente os argumentos são os mais salutares, o que mais interessa à causa pública, não se cura de saber como as coisas acontecem, só que acontecem, sempre para o mesmo lado, ora dos bons (poucos) ora dos tratantes (a maioria). Mas sempre o mesmo lado político consoante a circunstância. É a circunstância que escolhe o lado, não a militância. E a suprema discussão está tantas vezes na razão inversa da importância do que se discute.
Mas voltemos à mesa do café, de onde já foram afastados uns martinis com cerveja para adoçar o bico e soltar a língua. Eu, que só tinha tomado café, mantinha-me mais ou menos fora, debicando as postas de pescada a que se refere Paulo Bento.
A conversa animou quando alguém atirou que Rui Rio é muito sério, muito sério, mas não deixa de ser igual aos outros: quando se trata de ajudar os amigos, vai lá 600 mil euros para o escritório de advogados do Rangel. Por ajuste directo, que é como quem diz, por debaixo dos panos. Sem dar cavaco às tropas.
A partir daqui, nada mais importa, se houve consulta pública, se os pareceres defenderam a autarquia, se o contrato foi feito antes de Rangel ser conduzido ao lugar de sócio de capital (se for, mesmo, só capital, vá lá, ainda bem que não exerce à nossa custa, com viagens à borla por conta do Parlamento Europeu). Como não importa que não tenham sido 600 mil ou 387 mil, e se o valor / hora facturado rondou os 60 euros; os valores são o que menos importa já.
Como terá passado despercebido o teor da notícia de que o aludido escritório prestou serviços, nos mesmos moldes, às câmaras de Boticas, Marco de Canaveses e Santa Maria da Feira, que, por acaso, e só por acaso, são de maioria PSD.
A partir de determinado calor na discussão, já não se sabe quem são os maus, os bons, tal a sanha com que se engalfinham os lados, se entrelaçam alianças de ocasião.
É nestes momentos, em que lembro um velho conselho brasileiro (dá um boi para não entrares na guerra, mas, depois de estares nela, dá uma boiada para a venceres), que costumo sair, sobretudo se não sou íntimo de qualquer dos argumentadores. Ou se não tenho um boi para o salvo-conduto.
Foi quando fiz menção de me levantar para pagar ao balcão, e passem lá muito bem, meus senhores, que, do meu lado esquerdo, alguém atira: “Vocês estão para aí todos a bater, mas qual de vocês nunca teve vontade de pôr um processo à câmara, uma providência cautelar, apenas porque sim ou porque não está de acordo? Só não o fazem porque não têm guito. Se tivessem, lá teria a câmara de contratar mais umas centenas de milhares“.
O que é certo é que a conversa amainou. E ficaram todos a olhar uns para os outros, quando o Manuel Patrocínio, calado até este momento, atirou entre dentes: “Estamos para aqui a discutir, a levantar a voz, a gastar-nos, a zangarmo-nos uns com os outros, e nunca nos perguntamos por que razão estes escândalos só acontecem quando se fala de eleições. Durante a maior parte do tempo, eles, os políticos, escondem-se uns aos outros, cobrem-se a bem dizer, só são sérios quando lhes cheira a tacho. E mais vos digo, mas depressa que é a hora dos morfes, não se espantem se esta merda tiver sido levantada por um ou mais candidatos já assumidos e que têm o carimbo de gastadores na fronha. É que já estão a ver, se vierem a ganhar, que os milhões que o Rio deixa nas contas bancárias não lhes vão chegar. E marquem lá o dia de hoje. Vale uma aposta que quem vier a seguir vai fazer o mesmo?“.
É por isso que, quando oiço estas discussões, que acabam como começaram, inopinadamente, me pergunto se vale a pena perder tempo com gente como a que temos de aturar e aguentar na política. Ou, simplesmente, cada povo tem o governo que merece. Somos apenas profissionais do insulto, adoramos um barulho, faz-nos bem esticar as goelas, mas não passamos disso. Chamar os bois pelo nome poderia sempre ser um bom começo, se não ficasse por aí a nossa intervenção cívica e social. Como fica quase sempre.
“PORTUGAL HOJE o medo de existir”