Como Se Fora Um Conto – Para Estes Não Há Funerais de Estado

Conheci-a num Centro Comercial. Vendeu-me alguns artigos de que eu necessitava e alguns outros que eu não sabia que queria. A sua simpatia era contagiante e o seu sorriso alegrava a alma.

A conversa, essa, veio naturalmente, e ficamos como que amigos. Fiquei a saber que o trabalho era bom e gratificante, que gostava do que fazia e que fazia o que gostava. Só tinha vinte anos mas já trabalhava há perto de quatro. Por incapacidade económica não tinha estudado mais que até ao fim do ensino obrigatório. Talvez que um dia continuasse. Por agora, sentia-se bem assim. Estava a subir na carreira de ‘balconista’, e até já mandava em parte da sua secção. Para além disso, tinha outros interesses que lhe tomavam todo o tempo disponível. Era bombeira voluntária. Andava nas ambulâncias a transportar doentes de e para os hospitais, e também no terreno a apagar os fogos que outros atearam em terrenos que não eram dela. E era assim, porque queria que assim fosse. Sentia-se bem a fazer o bem à comunidade, e como ela, havia mais umas quantas na sua corporação. Não era a única bombeira.

No Sábado anterior, tinha saído do seu trabalho pelas dez da noite, dirigiu-se a casa, pegou na farda e foi para o quartel, de onde seguiu para o Gerês. Foi ajudar a apagar o fogo que já lavra há muitos dias por aquelas bandas. Regressou perto das quatro da manhã e às dez, já estava de novo no seu posto de trabalho, no Centro Comercial, uma vez que o seu horário, rotativo, implicava estar lá à abertura da loja. As dificuldades superam-se quando outros valores mais elevados aparecem, disse-me.

Não lhe perguntei pelas motivações que a levavam a fazer o que faz. Não sei que exemplos familiares os de amigos a levaram a enveredar por aquele caminho. Não lhe perguntei pelo medo que teria muitas vezes de sentir, ao ver-se rodeada de labaredas, ou se valia a pena tanto sacrifício. Falou-me disso e do seu voluntariado como bombeira, com o à vontade e a naturalidade de quem se sente bem consigo mesma, e com orgulho, como se fosse um objectivo de vida.

Lembrei-me da bombeira Josefa, morta enquanto combatia o fogo ateado por fanáticos intolerantes ignorantes e básicos a mando de energúmenos, e do silêncio a que os bombeiros, na sua generalidade são votados. Ninguém lhes reconhece o valor, nem tão pouco o sacrifício individual e anónimo mas esperamos sempre que cumpram a sua “obrigação”. Só nos lembramos deles em alturas de aflição, ou quando são notícias de jornais e televisões pelos piores motivos, quando se aleijam gravemente ou quando morrem durante o combate às chamas. E estes homens e mulheres só lá estão por dedicação social, nunca pelo que recebem ou podem vir a receber em termos económicos. Mesmo assim, para estes, os que morrem, não há funerais de estado, não se dá o seu nome a ruas, não se ouvem discursos laudativos dos políticos, nem há pensões gordurosas e vitalícias para os seus familiares.

Quantos de nós seríamos capazes de dar tanto da nossa vida aos outros, sem reconhecimento que não seja o de sabermos que cumprimos com o que consideramos que é de direito, seja qual for o voluntariado a que nos dediquemos, bombeiros, ajudantes e acompanhantes de doentes, tratamento dos sem abrigo e de tóxico-dependentes, ou quaisquer outros.

A minha nova amiga merece tudo o que de bom lhe possa acontecer na vida. Guarda os seus momentos de lazer num lugarzinho pequeno e arrumado, gastando o seu tempo livre em proveito da comunidade com a simplicidade que só alguns, bons, conseguem.

Comments

  1. graça dias says:

    era tudo, mais simples se a maioria da população, que até não tem quase nada para fazer,dedicando se ao voluntariado?; em vez de falso salvadores da pátria com palavras?
    coragem, e amor pelo proximo há pouco quem?

  2. carlos fonseca says:

    Felizmente, por todo o país, ainda há exemplos dignos do elogio que teces. Mas infelizmente, todos anos, há Josefas e Josés que dão a vida pelo interesse colectivo. Uns e outros, na maior parte do ano, são de facto esquecidos.
    Um abraço

  3. julia says:

    Caro Amigo:
    Compreendo as suas preocupações, “como se fora um conto…
    Com tristeza assistimos a “contos” demasiado reais e sem fim à vista.Há pequenos oásis que nos confortam e nos levam ainda a ter Esperança:
    No meu coração estão todos os VOLUNTÁRIOS , distinguindo os que deram a VIDA: PAZ à sua ALMA.
    Ocupar algum do seu tempo livre, no voluntariado
    é duma riqueza interior inimaginável! Imaginem dar e, imaginem receber…atitudes, sorrisos, companhia,etc.
    A recompensa é tornar-nos cidadãos solidários e felizes.
    Nunca a humanidade teve tanta necessidade de solidariedade efectiva e de acções conjugadas para fazer face a perigos que nos assediam…
    Mentiria se dissesse que confio no nosso instinto colectivo de sobrevivência, mas também vejo algumas boas razões para ter ESPERANÇA!
    Todos nós, que vivemos o hoje, neste séc., temos o dever-e mais do que todas as gerações precedentes, os meios -de contribuir para o nosso presente,com SABEDORIA, LUCIDEZ e MATURIDADE, mas igualmente com PAIXÃO e por vezes com ira.
    Sim, com a ardente IRA dos JUSTOS.
    Até amanhã! Até sempre!
    Júlia Príncipe

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