Como Se Fora Um Conto – O Viúvo Provisório

O Viúvo Provisório

Sentia-a como a melhor pessoa que alguma vez lhe coubera. A cumplicidade nas diferenças que tinham era enorme. O amor que nutriam um pelo outro era ainda maior.

Reduzido a uma provisória e passageira condição de viúvo, com a cama desfeita de um só lado, com um vazio secreto de que só se dava conta a espaços na noite e na hora do acordar, João vivia os dias triste a cansado, mas só pela condição de ser assim, triste.
As insónias vivia-as sozinho, tal como ela que, no andar de cima nem cama tinha, antes um catre estreito e curto, onde dormia, ou tentava dormir. Ela que era grande, comprida, muito mais do que ele.
“que queres que te faça, ressonas!”
Ele bem que sabia disso, mas não controlava o barulho que desde há alguns anos fazia. Era um barulho com vida própria, senhor do seu nariz e totalmente independente da sua vontade. [Read more…]

Um Meninico Como Outro Qualquer – Como Se Fora Um Conto

No segundo ano da segunda metade do século passado, em pleno estio, o meu avô Júlio recebeu em sua casa o sétimo neto dos nove que acabaria por ter. O pimpolho que mais tarde acabaria por vir a ser este vosso escriba, recebeu loas de toda a família e de mais quem fosse. Minha avó, mulher para quem os filhos e os netos eram tão-somente os melhores do mundo e arredores, fez uma propaganda enorme no que à beleza do menino dizia respeito. Afinal era o primeiro, e acabaria por ser o único a poder continuar o nome da família.

Naquela altura, muito embora já sem a força de outros tempos, meu avô era ainda uma das figuras importantes da vila. O terceiro da hierarquia lá do sítio.

Solicitador encartado, fazia o papel de advogado em muitas situações, já que por aquelas bandas não havia profissionais daquele ofício. Tinha escritório em cinco comarcas em redor, e diziam as más-línguas, que casa montada em cada uma delas. Afilhados eram mais que muitos, e todos traziam consigo o nome de meu avô. Havia até quem dissesse que o apadrinhamento os fazia serem muito parecidos com ele. Tinha sido fundador dos Bombeiros da Vila e o seu primeiro Presidente, e era muito bem considerado por toda a gente. Amigo de bem comer e conhecido também pela sua bondade e largueza de mãos, cedo delapidou toda a fortuna amealhada ao longo de uma vida de trabalho, por via dos pedidos que constantemente lhe faziam, que sem excepção sempre satisfazia, fossem eles de dinheiro, de terras, de árvores ou de animais.

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Como Se Fora Um Conto – O Menino e o Papagaio de Papel I

A vontade comandava-lhe o sonho e este regia-lhe a vida, que nunca fora fácil nem doce nem bonita, e enquanto pensava olhava a sua mão frágil que com a guita bem esticada segurava o papagaio voador que bem lá no alto rodopiava sem parar, olhava para cima e pensava em como gostaria de se ver lá em cima, ouvindo o ruído suave do vento, um ou outro pio de uma qualquer companheira de viagem e vendo tudo na sua real dimensão, tudo pequenino, muito pequenino, quais formiguinhas na sua labuta diária, mas não era assim, as coisas tinham o tamanho que tinham, e como que para lhe provar isso, de vez em quando o vento soprava mais forte e ele quase não conseguia segurar o cordel que lhe magoava as mãos, ora uma ora outra, que se iam revezando no esforço, com a mestria a que já estava habituado, que sempre assim fora toda a vida, sempre tivera que lutar para ter alguma coisa e a luta por vezes era renhida embora fosse bom chegar ao fim e ganhar, não como desta vez em que se sentia perdido e tonto, sozinho com o papagaio pela primeira vez, que quase não conseguira pô-lo no ar, e era domingo como das outras vezes, mas ao contrário dessas estava só, com uma lágrima por companhia.

Como Se Fora Um Conto – Ano Novo, Vida Nova?

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Como seria bom que o novo ano de 2011 nos trouxesse realmente uma vida nova.

As crises que travessamos, a internacional e a interna, podem e devem ser aproveitadas para mudarmos a nossa maneira de ver as coisas, o nosso entendimento da política e dos políticos, o nosso olhar para o estado de Portugal.

A crise interna, que para além de económica é acima de tudo de valores, pode ser mais facilmente ultrapassada com mais e melhor educação, com mais e melhor ensino, com mais e melhor cultura, e também com mais e melhor democracia.

O nosso país não cresce há mais de dez anos, todos os números são maus, todos os indicadores estão no fundo da Europa, excepto claro, os que o governo lê ou quer ler, e nos impinge quase diariamente, numa lavagem cerebral digna do melhor vendedor da banha da cobra. [Read more…]

Como Se Fora Um Conto – O Natal e o meu dia de Reis

Durante muitos anos, nos meus tempos de ganapo e mais tarde de adolescente, a noite de 5 de Janeiro era uma perfeita e completa chatice.

Meu pai, não dispensava ao jantar, o bacalhau e as batatas e as couves e o polvo cozidos, e o vinho tinto (que eu não podia beber por causa da idade, só a água me era permitida) e o pão e os doces (que eu detestava) e mais nada! Em tudo igualzinho aos jantares do dia 24 e do dia 31 de Dezembro. Chamava-lhes a consoada de Natal, de Fim de Ano e de Reis. O problema era que tal como a consoada do dia 31, esta não tinha as prendas do Menino Jesus no sapatinho, e para além disso e também ao contrário desta e da do dia 24, não era feriado no dia seguinte. [Read more…]

GAVE & PISA

COMO SE FORA UM CONTO

Há por aí algumas coisas que me baralham.

Sendo pai de vários filhos, em diversos sectores etários, vejo-me confrontado com diversas realidades. Uns, os mais velhos, são já formados, estão empregados, ganham mal, mas vão sendo dos que, privilegiados, arranjaram trabalho remunerado nestes dias tão difíceis. Um outro, já no segundo ano da faculdade, é um aluno quase brilhante, pelo menos se comparado com os seus pares. O mais novo, actualmente no sétimo ano de escolaridade é um aluno médio/bom. São pessoas que sabem falar sobre qualquer assunto, dependendo do nível da sua formação e que não dão pontapés na gramática Portuguesa. Para tal, tive ao longo dos anos, uma especial atenção à forma como se expressavam, como escreviam e como elaboravam as suas ideias. A par disso, a minha atenção virou-se muito e também para a compreensão dos números. [Read more…]

Brrrrrr … Que Frio

Brrrrr … Que frio!

Mais um drama se abateu sobre os cidadãos portugueses. Já não bastava a recessão que teima em não acabar, veio agora o frio.

Nestes dias, a temperatura desceu muito. Os termómetros marcam valores abaixo de zero em muitos locais do país, e parece que vai continuar assim mais algum tempo. Imagine-se que até no Algarve faz frio, em Dezembro, a meio do mês, quase com o Inverno a entrar-nos pelas portas dentro.

O que parece ser um facto é que Portugal tirita de frio. [Read more…]

Como Se Fora Um Conto – A Mercearia do Sr. Janeira

Dia a dia dou por mim a beber a minha cidade, sem sofreguidão, saboreando cada momento, cada pessoa, cada rua, cada viela, avenida ou alameda.

Aprecio o sol coado pela suave bruma, engulo com satisfação os ditos, os palavrões, a calma do senhor que está sentado num banco de jardim a ler o jornal, ou a senhora atarefada que com o saco meio cheio vem da mercearia.

Com muito vagar, sinto o tempo a passar pelo meu corpo, andando para trás, e revejo a vida da minha rua na altura em que eu era pouco mais que adolescente e olhava tudo e todos, julgando que os não via.

Na minha rua havia de tudo, gente de todas as classes sociais e lojas e fábricas e tudo. Era uma rua muito completa e variada. [Read more…]

Novo Acordo Ortográfico Europeu (versão Inglesa)

COMO SE FORA UM CONTO

The European Commission has just announced an agreement whereby English will be the official language of the European Union rather than German, which was the other possibility.

As part of the negotiations, the British Government conceded that English spelling had some room for improvement and has accepted a 5-year phase-in plan that would become known as “Euro-English”. [Read more…]

Como Se Fora Um Conto – As Francesinhas na Revolução Francesa

I

Vivia-se no ano da graça de 1809 e o mês de Junho.

Soult, General e mais tarde Marechal, regressava a casa triste, acabrunhado e abalado com a derrota. A bem da verdade não tinham sido os Portugueses a vencê-lo, tinham sido os Ingleses, mas isso era ainda uma desonra maior. Perdera fama, prestígio e muita gente nesta campanha. E só fora ‘dono’ da cidade pouco mais de dois meses.

Era de noite e o General tinha fome. Apesar de a Galiza estar ocupada pelas suas tropas e no trono espanhol estar o irmão de Napoleão, José Bonaparte, há dois dias que só comia fruta dos pomares por onde passava e um caldo horroroso que Pascal, seu novo escudeiro, lhe preparava com o que ia encontrando pelo caminho. Estava a ser difícil o regresso por terras espanholas, os Galegos também lutavam contra o invasor, e os seus mais dedicados criados tinham desaparecido. E que falta lhe faziam, já que um era o seu cozinheiro particular que sabia segredos culinários que mais ninguém sabia e o outro o padeiro cujas mãos para amassar pão de diversas qualidades o levara ao seu serviço. Há já alguns anos, a bem dizer muitos, que esses dois homens o acompanhavam. Teriam morrido? Teriam sido capturados pelas gentes do Porto? Não sabia e não tinha hipóteses de os ir procurar. Que maçada! [Read more…]

Como Se Fora Um Conto – Rosa de Porcelana Pintada

CONTA-SE NA MINHA FAMÍLIA

No princípio do século vinte os hotéis e pensões tinham quartos para alugar que não possuíam quarto de banho. Este situava-se normalmente ao fundo do corredor e servia todos os quartos desse andar. Havia até pensões que tinham um só quarto de banho para os diversos andares dos quartos.

Na minha família havia um Padre. Quase todas as famílias tinham pelo menos um. Este, pelos anos vinte do século, era já entrado na idade. Teria bem mais de sessenta anos.

O Tio Padre, fazia palestras e orava em muitos locais para onde era convidado. Um dia teve de se deslocar a Chaves, em pleno Inverno, para falar, a convite de uma qualquer organização. Foi de Paços de Ferreira, onde residia, para Chaves, de charrete, como era hábito naquelas alturas.

Chegou a Chaves já o dia tinha acabado havia muito tempo, [Read more…]

Como Se Fora Um Conto – Para Estes Não Há Funerais de Estado

Conheci-a num Centro Comercial. Vendeu-me alguns artigos de que eu necessitava e alguns outros que eu não sabia que queria. A sua simpatia era contagiante e o seu sorriso alegrava a alma.

A conversa, essa, veio naturalmente, e ficamos como que amigos. Fiquei a saber que o trabalho era bom e gratificante, que gostava do que fazia e que fazia o que gostava. Só tinha vinte anos mas já trabalhava há perto de quatro. Por incapacidade económica não tinha estudado mais que até ao fim do ensino obrigatório. Talvez que um dia continuasse. Por agora, sentia-se bem assim. Estava a subir na carreira de ‘balconista’, e até já mandava em parte da sua secção. Para além disso, tinha outros interesses que lhe tomavam todo o tempo disponível. [Read more…]

Como Se Fora Um Conto – A Minha Tristeza e a Dona Ana da Casa Grande

Se estiver triste ou alegre ou se se sentir assim-assim, ou ainda se estiver mais sensível do que de costume, não leia. Esta é uma história penosa.

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É quase noite e é forte, a dor da tristeza. É sempre assim, não importando a razão porque se está triste. Desta vez em nada é diferente. Estou triste, e o tempo que tudo cura demora a passar.

É chato o estar triste. E ainda por cima as pessoas olham-nos de través e se tiverem oportunidade, fogem de nós. Para tristeza, basta-lhes a que carregam, não precisam de se aborrecer com a dos outros. Até eu me olho de través, e nessas alturas, se pudesse, ia-me embora de mim, e não voltava.

«Lembro-me que nos meus tempos de miúdo, perto da casa de meu avô, vivia uma senhora que estava sempre triste. Era uma mulher muito rica que vivia sozinha num enorme casarão, sem marido, sem filhos, sem qualquer familiar. Chamavam-lhe dona Ana da casa grande. À sua passagem, falava-se baixinho, comentando o que ninguém sabia. Amores antigos e impossíveis, diziam uns, enquanto outros se inclinavam para as hipóteses de assassinatos múltiplos, [Read more…]

Temperaturas Altas

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O calor aperta.
É já noite cerrada e os termómetros não descem dos trinta graus.
Quero dormir. A temperatura não deixa. Já bebi quase dois litros de água.
Estou doido de sono e o cansaço que me consome, não se deixa vencer nem convencer.
Isto assim não é o costume na minha latitude. Ás vezes acontece, mas não mais que uma vez no ano e por poucos dias, mas neste, já vamos na terceira vez, e ainda só estamos em Julho. [Read more…]

Como Se Fora Um Conto – As Férias Grandes

No tempo da minha juventude, já lá vão muitos anos, e da de quase todos os que têm mais de trinta anos (os meus filhos mais velhos já têm), as férias grandes eram mesmo grandes. Tão grandes que, por vezes, nos víamos a pensar que nunca mais chegavam as aulas. Eram três meses inteirinhos, compridos, muito compridos, feitos de noventa dias a fazer pouco ou nada. Nessa altura, tínhamos, eu e os meus muitos primos e a maior parte dos meus amigos, a praia, desde as nove da manhã até mesmo ao final da tarde, uma estadia de uma ou duas semanas em casa de familiares no campo, e outras tantas em casa de outros familiares, na montanha. Mais tarde, na juventude dos meus filhos, as semanas na montanha tinham já acabado, com o desaparecimento dos familiares que por lá viviam.

Os meus primos, os meus amigos e eu, e mais tarde os meus filhos, pertencíamos a um grupo de privilegiados, uma vez que a maior parte da população das cidades não tinha as nossas possibilidades de escolha, nem muitos familiares predispostos a aturá-los durante parte das férias. Esses, passavam quase todo o tempo na [Read more…]

Como Se Fora Um Conto – Associação Fotográfica do Porto – A polémica nasceu

Vá-se lá saber porquê, talvez que movido por interesses próprios fruto de um protagonismo que lhe estará a fugir, ou eventualmente servindo os de alguém que se esconde por trás de um anonimato pardacento, ou por uma qualquer outra razão que me escapa, surgiu, pela voz e acção do coordenador dos «Encontros do Olhar» do IPF (Instituto Português de Fotografia), a notícia, bombástica, da «inqualificável» usurpação do nome intocável da AFP (Associação Fotográfica do Porto), pela actual Associação “Portografia”.

Para o comum dos cidadãos da cidade do Porto, a sigla AFP poderá querer dizer  uma qualquer coisa, desde futebol a farmácias passando casualmente pela fotografia, e terá um interesse relativo, mas para os fotógrafos mais antigos, e se calhar só para esses, faz parte da história da fotografia, da cidade, e do País. Teve, no seu tempo, já lá vão mais de trinta anos, uma importância relevante na formação e criação de fotógrafos no norte do País e em especial na cidade do Porto. A AFP, foi e será sempre parte integrante e importante da vida e da história da cidade.

Entendo ser uma pena que os que com ela conviveram, com ela aprenderam e com ela se tornaram em alguns dos melhores fotógrafos Portugueses, nunca tivessem querido preservar o seu nome, constituindo-se em grupo organizado, e, também, nunca tivessem estado dispostos a descer do seu pedestal e criado um espólio com obras, máquinas e toda a espécie de trabalhos dos seus associados. A AFP morreu por culpa de todos eles, esquecida, velha e caduca, não se sabendo muito bem quando nem como. Dessa AFP, restam memórias e alguns encontros em almoços e jantares feitos por alguns saudosistas.

No ano de 2009 nasceu uma, mais uma, AFP. [Read more…]

Como Se Fora Um Conto – O mês de Junho terminou, já acabaram as festas populares – o S. João –

À minha direita o mar, lá ao longe, à minha frente uma parede de pedra e à minha esquerda as duas senhoras já entradas na idade terceira, que ciciavam. Sentadas uma ao lado da outra, à mesa do café, falavam em surdina dos tempos de antigamente. Em cima da mesa estavam guardanapos, uma torrada de pão de forma, uma mirita, uma meia de leite e um pingo.

O tema da conversa era a festa do São João, comparando a de agora, com a de outrora.

Na verdade pouco se entendia da conversa, apesar dos meus esforços de atenção e do meu esticar de orelhas para aquele lado, já que conseguiam falar bastante baixo.

No entanto lá pude perceber sobre que conversavam e apanhar uma ou outra ideia. Essencialmente, adoravam o Porto e a sua festa da noite de S. João, mas não gostavam de barulho, nem dos martelos, nem da música que dos altifalantes saía e que se ouvia por toda a cidade, nem do ronco das recentes vovuzelas. Também lhes fazia falta o alho e a cidreira, e os bailaricos. Sim, os bailaricos que havia, e que assumo que ainda haja, toda a santa noite, em inúmeros pontos da cidade do Porto.

Aos poucos fui deixando de as ouvir. Catalisados pela conversa que eu entre-ouvia, os meus pensamentos começaram a tomar conta de mim.

Vi-me na minha meninice e também no fim da minha juventude. A revolução tinha acabado de acontecer e a «liberdade» tinha chegado.

Na altura a festa do S. João estava [Read more…]

Como Se Fora Um Conto – O Opel Corsa, o Rúben e a Torrada de Pão de Regueifa

Era ainda de manhã, cedinho, de uma sexta-feira feita para engenheiros de pontes. Ontem, muitos, demasiados, festejaram o dia do meu País como se tudo estivesse bem.  À mesa do café onde muitas vezes desjejuo, leio distraído o jornal do dia. A revista que o acompanha também está por ali, com a sua capa colorida a tentar chamar-me a atenção.

Entre uma leitura de títulos da primeira página do jornal e da revista, e uma espreitadela às fotografias que os acompanham, fico sabedor do que mais importante se passou no dia de ontem, ou nos que o antecederam.

Aos poucos vou tomando consciência do que é interessante para os Portugueses.

Assim, pedindo desculpas pelo tratamento muito informal que vou dar às pessoas, fiquei a saber que a Sofia e o Nuno, [Read more…]

Como Se Fora Um Conto – O Descalabro do J

O Descalabro do J

O estrondo, enorme e contínuo, baralha as ideias, impede o pensamento e perturba o imperturbável caminhar das horas e dos dias.

As casas, os prédios e as pontes, caem como baralhos de cartas, lançando a destruição à sua volta. As estradas, as ruas e os caminhos, desaparecem, deixando no seu lugar, uma amálgama de trilhos sem sentido e sem indicação de rumo.

No meio de tanta desgraça, J sente-se perdido. Olha à sua volta e só a devastação e a ruína se encontram à vista. O desespero ameaça tomar conta das suas acções. As soluções não existem, os caminhos não se vêm, a solidão está presente.

Os familiares, mesmo que voltassem com os seus esforços e cheios de boa vontade, não apagariam a tristeza nem acalmariam a desesperança.

J é a imagem personificada do desânimo.

Ao seu lado, não tem companheiros de infortúnio. Ninguém repara no seu sofrimento, ou ao menos se importa. Cada um tem a sua própria dor. E as dores dos outros são sempre privadas. [Read more…]

Nunca Paguei, Bruna!

Como Se Fora Um Conto

Devo pertencer a um grupo minoritário, creio, que nunca pagou para ver/ter uma revista com fotografias de mulheres nuas, que nunca pagou para ver/ter um filme cuja classificação dada fosse «para adultos», que nunca pagou…

Há dias, estava eu a passar um fim de semana maravilhoso no planalto mirandês, quando uma notícia percorreu o País.

Na zona onde me encontrava, Mogadouro, não se falava em outra coisa. Ali perto, numa cidade vizinha, quase toda a população correu aos quiosques a comprar uma revista, esgotando os espécimens disponíveis. [Read more…]

Como Se Fora Um Conto – O Meu Tio R

De uma forma ou de outra todos nós temos ou tivemos um tio. Eu ainda tenho. Às vezes, quase todas as vezes, os tios que temos não nos dizem nada de especial, outras vezes, pelo contrário, são como este que eu tenho.

Este tio que eu tenho é o «meu tio». Não tenho outro, nem nunca tive. Bem, isso não é propriamente verdade. Tive e tenho ainda outros tios, mas são-no por afinidade, casaram com as minhas tias. Assim, este é o meu verdadeiro Tio.

Ora bem, o meu tio, [Read more…]

Desonestidade Intelectual

COMO SE FORA UM CONTO

A desonestidade grassa por aí. Faz parte da vida dos nossos dias. Olhando bem, a intelectual é talvez a que mais se nota.

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Nestes dias da visita do Papa a Portugal, muitos, demasiados, previram que os Portugueses iriam demonstrar uma indiferença e um afastamento enormes.

Previsões erradas e desprovidas de bases seguras, no entanto afirmadas e reafirmadas como verdades absolutas.

Às mesas dos cafés, nos locais de trabalho, nos blogues, nos jornais, nas televisões, em tudo quanto é sítio e lado, têm sido inúmeros os ditos jocosos, a chacota e os disparates, de muitos que se dizem agnósticos, ateus, laicos e sérios. A tentativa frustrada de desmotivação das pessoas, e a sobranceria e intolerância das suas opiniões só pode ser considerada patética. O ódio tem estado patente em muitas das palavras proferidas.

Esquecem, porque não sabem [Read more…]

Como Se Fora Um Conto – O Sr Adérito, Engraxador

Já lá vão muitos anos, mas as lembranças fluíam com rapidez.

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Sentado à mesa de um café da baixa Portuense, olhei os meus sapatos e pensei em quanto me saberia bem que aquele café tivesse um engraxador. Apeteceu-me ter os sapatos limpos, escovados e a brilhar.

Se ao menos ainda houvesse engraxadores! Já há muito que os não via. Os últimos estavam naquela entrada da rua Sampaio Bruno, quase em frente à Casa da Sorte. Havia também um ou dois, que paravam na Praça da Liberdade, quase na esquina da rua da ‘engraxadoria’.

Antigamente, não havia café que não tivesse um, e havia trabalho para todos. Todo o homem que se prezasse gostava de ter os sapatos a brilhar. Hoje são raros, os engraxadores, já que sapatos a brilhar ainda os vai havendo, e homens que se prezem ainda há um ou outro.

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Como Se Fora Um Conto – 25 de Abril de 1974, o Dia de Todas as Perdas

Amanheceu cedo o dia de todas as perdas.

Amanheceu muito cedo o dia de alguns ganhos.

Dali para a frente, tudo foi feito às avessas.

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Naquele tempo, cumpria o serviço militar, e naquela manhã, estava «desenfiado». Desenfiado era o termo utilizado pelos magalas para definir quem, devendo estar de serviço dentro do quartel ou instituição militar, se encontrava fora, normalmente em casa, a dormir.

Ora na verdade, eu estava desenfiado. Dormia a bom dormir quando, pelas oito da manhã, uma tia me telefona a perguntar o que sabia eu da revolução. Nada, não sabia nada. Se calhar era outra intentona como a de Fevereiro, disse. [Read more…]

Como Se Fora Um Conto – A Minha Viagem Praga

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A MINHA VIAGEM A PRAGA

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Já há muito tempo que desejava ir à República Checa. Minha mulher, sabendo desse desejo, marcou uma viagem numa semana de férias. Era agora. Estava a chegar o dia.

Com entusiasmo, procurei nas casas de câmbios e nos principais bancos, coroas para trocar por euros. Não havia, nada, nenhuma. Mas informaram-me que, logo no aeroporto de Ruzyne, e também por todo a cidade, encontraria locais para esse câmbio. Fiquei descansado. Afinal, iria para uma cidade, para um país, pertencente à Comunidade Europeia.

Desde o fim da década de oitenta do século passado que se pode, com facilidade, visitar esta cidade, durante tanto tempo escondida pelo regime comunista.

Iria conhecer [Read more…]

Como Se Fora Um Conto – Natália, a Cigana

Natália era cigana. Vivia num acampamento no meio do pinhal, lá para as bandas de Albergaria. Não teria mais de quinze anos e era muito bonita e vistosa.

Como qualquer uma na sua situação, passava por muitas dificuldades. Havia dias em que faltava a comida. Havia dias em que faltava todo o resto. Nesses dias ela sentia falta da escola onde já não ia há mais de quatro anos. O trabalho de apanhar gravetos no pinhal, de lavar a roupa da catrefada de irmãos, de procurar água para se lavar ou comida para se alimentar, de ajudar os pais na sobrevivência do dia a dia, eram mais importantes que a aprendizagem numa qualquer escola.

Natália tinha uma amiga dos tempos da escola. Leonor não era cigana nem passava dificuldades como as de Natália, mas trabalhava de sol a sol, nas lides do campo, nas lides da casa, nos estudos que sabia importantes para o seu futuro. A amizade das pequenas era tal que Leonor, tinha permissão de [Read more…]

Como Se Fora Um Conto – Na Páscoa, o Compasso Já Não Vem a Minha Casa

Ao contrário de muitos que fazem questão de dizer que são tudo menos católicos, e que, em todas as manifestações religiosas, cá nos vêm informar da sua não religiosidade, como se isso fosse de algum interesse, não tenho por hábito falar das minhas convicções.

Desta vez, no entanto, resolvi vir falar da minha tristeza por já não ter o Compasso em minha casa, e da minha saudade dos tempos em que, em casa de meu avô paterno, toda a família se reunia para o receber.

O dia amanhecia muito cedo para toda a gente, excepto para nós, crianças. Éramos nove primos, e seis de nós dormíamos naquela casa. Era como se fosse Natal, mas não havia prendas. Quando nos levantávamos, ao som de fundo dos foguetes, já nossas mães e tias se atarefavam nas lides de tudo deixar a postos para «receber o Senhor», e a senhora Margarida e uma ajudante labutavam na cozinha para que o almoço fosse como sempre, sublime.

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Como Se Fora Um Conto – A Srª D. Anésia, O Sr. Dr. Antunes e o Primeiro de Abril

Convivi com eles muitos anos, perto de vinte, para mais que não para menos. Viviam no primeiro andar do meu prédio. Foi para esse andar que, nos idos de 78, eu fui viver, separando-me da casa de meus pais.

Ela, muito católica, oriunda do norte Valenciano, de lábios finos e nariz adunco, ele, economista, ex-funcionário da alfândega, coleccionador de selos. Ambos de uma bondade extrema, de uma educação esmeradíssima, de idade avançada, silenciosos, reformados, amigos.

Sem filhos, mas com uma sobrinha que a cada passo aparecia e que era a luz dos olhos deles, não lhes conheci amigos ou outros familiares. Viviam sós, um para o outro, a maior parte do tempo na sala virada ao sol, de onde viam o arvoredo do Consulado e o quintal que numa parte também lhes pertencia.

Davam-se muito bem connosco, em especial com a minha mãe, por quem tinham uma consideração especial.

O Sr. Dr. Antunes, era um velhinho muito culto, a quem eu achava muita graça ouvir falar. Utilizava com frequência termos que já nessa altura pareciam fora de moda. Com frequência o ouvia tratar as pessoas por excelência e pedir coisas por obséquio. Tinha uma voz agradável, um tanto ou quanto cantarolada e em momentos, aguda. A sua forma de falar lembrava-me a do Presidente do Conselho de Ministros da altura. [Read more…]

Como Se Fora Um Conto – Na capital do País que um dia foi um Império

“Assim, tratei dos papeis, tomei as vacinas, fiz as malas e rumei à capital.”

Quem me conhece saberá, por certo, o quanto me terá custado esta viagem. Ou melhor dizendo o quanto me terá custado aceitar fazê-la.

Isto de descer a sul de Coimbra tem sido, nos últimos anos, uma impossibilidade para mim. No entanto, depois de mais de três lustres, lá me decidi a aceitar a ideia de ir até lá, e mais do que isso, ficar para o dia seguinte.

Porém, antes de mais, tenho de me desculpar perante os amigos que por lá tenho. Alguns, que antes de o serem já o eram, e outros, que antes de o serem já o são. A Maria, o Luís, os Carlos, o Nuno, para só citar aqueles com quem mantenho um maior contacto, entenderão, tenho a certeza, o meu silêncio e o secretismo da viagem, que foi decidida em cima da hora e teve como objectivo curar alguns pequenos males familiares, e uma tristeza em mim instalada. Outra oportunidade haverá.

Assim, decisão tomada, tratei dos papeis, tomei as vacinas, fiz as malas e rumei à capital. [Read more…]

Como Se Fora Um Conto – O Meu Dia Do Pai

Chove e o sol não entra pela janela.

Abri as cortinas para que a luz melhor inundasse a sala.

Olho a fotografia. Está junta com as outras, numa prateleira com livros. São muitas as prateleiras e muitos os livros. São poucas as fotografias. Quase todas de familiares. Tios, avôs, pais, filhos, primos. Um a um. Dois a dois. Esta é especial, tem quatro. Os meus quatro filhos. Vejo-os pouco, e eles a mim. A um ou outro mais amiúde, a um ou outro, de longe a longe. Vamos falando pelo telemóvel ou pela internet. Grandes invenções, estas. Não lhes digo nada. Se quiserem aparecem. Às vezes não querem. Às vezes não podem. Às vezes …

Estão lá outras fotografias. Demoro-me na que mais me dói. Sinto saudades. Magoa-me a alma. Já lá vão quase vinte anos e não passa. A dor é quase a mesma. [Read more…]