Manuel Loff responde a Rui Ramos

No Público de hoje,

O debate de ideias não é fácil. E menos ainda quando se o procura evitar arrastando-o para um terreno que se pretende descrever como moral, quase judicial. Rui Ramos (RR), coordenador da História de Portugal que o Expresso que o decidiu oferecer aos seus leitores e que eu critiquei, na parte que lhe cabe, nas minhas duas últimas crónicas no PÚBLICO (2 e 16 de agosto), queixava-se há dois anos de que “vivemos num mundo muito diferente do que eu vivi em Inglaterra ou em Espanha, onde nos mesmos seminários, congressos e departamentos convivem pessoas com ideias muito diferentes, discutindo acalorada ou friamente, mas debatendo ou divergindo” (PÚBLICO, 31.5.2010). Ramos reagira assim quando, no PÚBLICO, São José Almeida o confrontou com as opiniões de vários historiadores (F. Rosas, A. Costa Pinto, M. de Lucena, I. Pimentel, eu próprio, com quem ele, mal ou bem, tem convivido em congressos, júris, comités), entre as quais se formularam críticas mais duras do que aquelas que eu agora dirigi ao seu trabalho.

O debate em torno do livro em questão não é novo e não surgiu do nada. A RR não se lhe ocorreu então de falar de “um simples caso de difamação pessoal”, de “desfaçatez”, de “calúnias” e “falsidades” — tudo epítetos com que me brinda hoje, evitando tratar-me pelo nome e chamando-me “um colunista quinzenal” do PÚBLICO, negando tratar-se de “uma polémica historiográfica ou [de] uma questão de opiniões”. Pela minha parte, habituado a que estou a que se use a tática da vitimização para desviar o debate, não alimentarei semelhante estratégia respondendo a tais epítetos — mas confesso achar que será fácil ao leitor perceber, como quase sempre acontece nestas situações, como todos eles poderiam recair sobre o seu autor…

É, no mínimo, excêntrico que RR gaste uma página inteira deste jornal para responder a “acusações” — a expressão é usada três vezes — “tão absurdas que não deveriam merecer resposta”. E, contudo, quem, como ele diz de si próprio, “há 7 anos que escrev[e] na imprensa semanalmente e particip[a] em programas de TV”, deve saber submeter-se à mesma crítica pública a que sujeita, como ele tem sujeitado, os outros. Sobretudo se publica resultados da sua investigação sob a forma de livro: nessas vestes, sabe que está sujeito ao contraditório e ao debate, regra intrínseca à produção de conhecimento que se pretende científico. E esse debate, mesmo que desenvolvido num jornal e não numa revista especializada, faz-se sempre com um mínimo de regras metodológicas simples, que passam por citar rigorosamente o que se pretende contradizer/discutir — o que fiz com tudo quanto de RR citei, ao contrário do procedimento (esse, sim, manipulador) que ele seguiu para se referir às minhas críticas, evitando fazer citações diretas e permitindo-se, assim, atribuir-me o que não escrevi. Ramos caricatura os meus argumentos e quer responder à caricatura. Se tal fosse admissível seria fácil, mas as minhas crónicas não foram escritas no Inimigo Público…

RR inventa até que eu lhe teria chamado fascista por escrever o que escreveu — adjetivo (com aspas, como se de uma citação minha se tratasse!) que usa três vezes na sua resposta. Imagino que queira arrastar-me para alguma alucinação sua de 1975, mas não o sigo. RR não precisa de ser fascista para ser um empenhado relativizador da leitura histórica da ditadura salazarista, que procura há anos desmontar a natureza ditatorial do Estado Novo para a tornar banal, comum, no contexto histórico em que ela se desenvolveu, usando argumentos que se conhecem há muito na Alemanha, em Itália, em Espanha, em França, entre outros, para relativizar experiências ditatoriais sobre cuja condenação se baseiam as democracias contemporâneas europeias, procurando branquear a imagem das ditaduras, quer reduzindo o seu peso histórico específico, quer contaminando todas as outras experiências políticas contemporâneas com a mesma suspeição moral. Há 15 anos que estudo este fenómeno; nada do que Ramos escreve me parece novo.

Sabendo bem como é inútil e desinteressante tornar estas discussões num o-que-eu-disse-mas-não-disse, é-me imprescindível insistir em que não escrevi que RR teria defendido “que a ditadura de Salazar não era uma ditadura, mas um regime democrático e pluralista”, como ele me atribui. O que disse, e reitero, e documentei devidamente, é que procurou desmontar a natureza ditatorial do Estado Novo, relativizando algumas das suas caraterísticas essenciais enquanto tal: (i) tomando a sua retórica propagandística como realidade; (ii) comparando-o com o liberalismo inglês do séc. XIX (p. 640) e com “uma espécie de uma monarquia constitucional” (p. 632), metáfora que, ao contrário do que RR escreveu há dias atrás, não tem curso legal entre “historiadores e juristas de diversos quadrantes ideológicos”; (iii) pressupondo haver uma “persistência do pluralismo” relativamente ao sistema liberal (p. 650); (iv) travestindo partido único, sindicatos nacionais, grémios corporativos, casas do povo, de “associações” “cívicas”, de “representação da população ativa”, “de socorro e previdência”, “desportivas e culturais” (pp. 627 e 644).
Dois casos terão irritado mais diretamente RR: a sua avaliação da repressão salazarista e aquilo que eu entendo ser uma visão intelectualmente cínica de um salazarismo que, afinal, “não destoava num mundo em que a democracia, o Estado de Direito e a rotação regular de partidos no poder estavam longe de ser a norma na vida política” (p. 669). As duas questões convergem para uma mesma visão, para a qual ele pretende conduzir o leitor: o salazarismo foi um regime claramente menos repressivo que a I República e o período revolucionário de 1974-75 (cf. pp. 652 e 732), e menos até que “regimes democráticos contemporâneos na Europa [que] apresentaram contabilidades repressivas análogas ou piores” (p. 652). Se aceitássemos como legítimas semelhantes leituras manipuladas da História, muitos achariam que o salazarismo, como aqui escrevi, poderia voltar a ser um regime para o nosso tempo.
Em contraste radical com a avaliação que faz do salazarismo, RR tem proposto um retrato especialmente retorcido do republicanismo e da I República portuguesa. É daquelas coisas que não há ninguém na historiografia portuguesa que não saiba. Sendo relativamente consensual discutir a democraticidade efetiva do sistema político republicano, sobretudo pela ausência de sufrágio universal, RR tem proposto comparações e interpretações que se qualificam a si próprias. Ele foi, por exemplo, capaz de encontrar semelhanças entre o republicanismo português e… o nazismo e a preparação do Holocausto. Não só ambos estiveram “umbilicalmente ligados a organizações esotéricas, de que retiraram símbolos e parte da retórica”, como, sobretudo, “o ódio [republicano] aos jesuítas constituiu uma espécie de antisemitismo da República. Aliás, algumas das medidas que Miguel Bombarda sugeriu contra os padres jesuítas (expulsão para uma ilha deserta, etc.) são semelhantes ao que os nazis alemães, alguns anos depois, pensaram fazer aos judeus, antes de se decidirem a exterminá-los” ( A Segunda Fundação, 1890-1926, 1994, pp. 413 e 411). Para ele, “a República de 1910 (…) era um Estado confessional e de partido único” — exatamente aquilo que nega sobre o salazarismo, contrariando a maioria da historiografia —, tomado pela “ideia do ‘despotismo da liberdade’” que Ramos acha ser caraterística da “esquerda [que] dispôs sempre dos meios teóricos necessários para chamar “democracia” à imposição de uma vontade minoritária”. “Depois de 1926, a restauração das “liberdades públicas” fez parte das reivindicações do reviralho” oposicionista de 1926-31, “mas essa piedosa e modesta reivindicação foi sempre a canção do bandido [!!] de quem estava na oposição.” [ Análise Social, vol. XXXIV (153), 2000, pp. 1062, 1064]. Uns equivalem-se aos outros, está visto…

Não creio ser necessário acrescentar mais nada.

P.S.:  Parece haver um turbilhão de reações nos blogues da direita intelectual a estas duas crónicas minhas. Alguma coisa deve ter a ver com agosto e a silly season. A mais excêntrica e ofensiva de todas é a de António Araújo no PÚBLICO, um homem de que me habituei a citar um livro sobre a constitucionalização do salazarismo, que veio agora desenterrar uma crónica minha num jornal online já desaparecido de há… 6,5 anos atrás!, sobre os novos assessores da Presidência da República (ele incluído), e que ele não contrariou então. É incompreensível que, todos estes anos depois, Araújo pretenda que isto tenha a ver com a discussão do “modo de escrever a nossa História contemporânea”, muito menos com o livro de RR. Confundindo uma série de opiniões que eu, efetivamente, não lhe atribuí, é inaceitável a colagem que faz à minha discussão com RR, e menos ainda o tom de desafio e de banco dos réus (“delito”, “caluniar e difamar”, “vilipendiar”…) que assume. Assim não há debate possível.
Manuel Loff
Via Joana Lopes

Comments

  1. Li,através de link no belogue “O Tempo das Cerejas”,que recomendo,as anteriores respostas.
    Tão bem respondido e elucidativo,nem sequer fiquei com curiosidade para ler tal sujeito.
    Os cadáveres sempre tiveram muitos vermes,o cadáver político que é este sistema também.

    mário

  2. Jose Saraiva says:

    O Professor Doutor Manuel Loff não passa de um reles prosélito do social fascismo estalinista, cujos monstruosos crimes pretende descaradamente branquear. Porquê e para quê dar trela a tal criatura?….

    • Professor Doutor é a designação que respeita a professores catedráticos, que não é por enquanto o caso de Manuel Loff. A sua ignorância sobre coisas académicas, mesmo tratando-se de um detalhe, diz tudo sobre a afirmação seguinte, ó criatura (que também nem sonha qual o significado de social-fascismo, mas a isso estamos habituados).

      • Por acaso, Doutor é o grau académico de quem concluiu um doutoramento. Professor é o que dá aulas. Daí haver Investigador Doutor (os investigadores doutorados), Professor Doutor (doutorados que dão aulas), Doutor (doutorado), etc.. Catedrático é aquele que tem cátedra, o que hoje em dia significa ser o responsável por uma disciplina. Nem todos os Doutores ou Professores Doutores são catedráticos, obviamente. Adoro correcções mal feitas! :p

        • Isso é norma e tradição de alguma privada? é que em Coimbra, que por acaso é uma universidade com alguma juventude, ninguém trata um catedrático por Professor Catedrático mas sim por Professor Doutor. Acima só Reitor, Magnífico.

  3. ZANGADO says:

    Este Loff diz no Público que Petain liderou um governo fantoche, devia saber que quem liderou esse governo, foi Pierre Laval . Para historiador ……….

  4. Miguel says:

    Este Manuel Loff é um zé-ninguém, e só quer estrelato… não passa de um estalinista, devia ir para a URSS, viver um ano nos gulags para ver o que é bom para a tosse…
    Salazar foi um grande estadista, admirado e respeitado em todo o mundo. Se não fosse e a sua política de neutralidade durante a segunda guerra mundial, e caso Portugal tivesse sido arrastado para a guerra, talvez este Loff não existiria hoje, porque os seus antepassados poderiam ter sido vitimas do conflito mundial e depois já não era possível gerarem essa aberração que debita asneiras nos jornais…

    • Salazar foi um grande estadista e tu és um grande idiota.

    • Maquiavel says:

      O ditadorzeco de Santa Comba era täo admirado e respeitado que… quem é que veio ao funeral? Ah, pois…
      O GULAG acabou de facto em 1953, com a morte do Estaline, e de jure em 1960.
      Já o Campo de Concentraçäo do Tarrafal reabriu em 1961.

      Se näo fosse a política de neutralidade do ditadorzeco de Santa Comba a democracia teria chegado em 1945.
      Claro que quem näo gostou que chegasse em 1974 também näo gostaria nada que tivesse chegado antes!

      Quem tem saudades do Salazar que dê um tiro nos cornos e vá ter com ele!

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