Lettres de Paris #19

Trump: président des États-Unis

DSC08593.JPG
é com esta frase que acordo. Ou melhor, é a primeira frase que leio no écran da televisão mal saio da cama e a ligo. Fico um bocado a olhar para aquilo, meia atónita, meio a dormir. Tinha-me deitado às 4 da manhã em Paris, ainda a procissão da contagem de votos ia no adro, mas já o mapa dos Estados Unidos se tingia de vermelho, mas não do vermelho bom. De maneira que acordei assim, com esta notícia que não é exatamente avassaladora, nem surpreendente, nem coisa nenhuma de assinalável. Suponho que metade do mundo tenha acordado exatamente como eu, embora talvez noutras línguas, e a outra metade tenha adormecido como acordei. Não que a Clinton fosse melhor, vá, mas pelo menos não seria tão ridícula, tão xenófoba, tão bacoca, tão vazia ideologicamente. Vi logo de manhã a cara do Trump quando do discurso. Pareceu-me a de alguém que também não acreditava exatamente no que (lhe) tinha acabado de acontecer. Também vi François Hollande, de beicinho, a felicitar oficialmente o Donald. Também me lembrei do episódio dos Simpsons, de há 10 anos, em que o Bart viaja até um futuro em que a Lisa tinha sido eleita ‘the first white straight woman’ (sic) dos Estados Unidos da América, um país que o seu antecessor, Donald Trump imagine-se, tinha deixado falido.

A realidade supera muitas vezes a ficção, mas por vezes fica bastante aquém. Não foi ainda desta vez que uma mulher foi eleita como presidentA da nação, diz-se, mais poderosa do mundo. Mas foi exatamente agora que um palhaço o foi. Lembrei-me hoje bastante da minha viagem deste verão a Washington D.C. e a New York e das conversas que tive com os taxistas a propósito das eleições. Se os vários táxistas que me transportaram nestas duas cidades constituissem uma amostra representativa do povo americano, Hilary Clinton teria, naturalmente ganho. Apenas encontrei um taxista que, imigrante, como todos, me declarou ir votar no Trump porque (e cito de cor, mas há para aí um postal em que se fala disto) ‘não era corrupto’. Tentei fazê-lo ver que, mesmo que não fosse declaradamente corrupto, teria certamente corrompido no seu longo caminho como empresário, alguns políticos. Não pareceu convencido. Os outros taxistas todos disseram-me que iam votar ‘pour la femme’ (assim mesmo, em francês, me disse um deles, oriundo dos Camarões mas orgulhoso ‘citoyen des États-Unis). O que me levou do hotel até à Union Station disse-me que votaria na Hilary Clinton mas que os homens dos Estados Unidos teriam dificuldade em votar numa mulher e por isso, Donald Trump talvez ganhasse. Assim aconteceu.
 
Claro que não é apenas a questão de género, por mais que ela seja importante, é a questão do desemprego, da precariedade, do encerramento de inúmeras indústrias, a questão da posse de armas de fogo e, mesmo, para alguns dos Americanos, a questão dos imigrantes. É a mistura de tudo isto com o discurso vazio de ideias e de ideologia de Trump, mas populista que chegue. Será ainda a mistura de tudo isto com o sucesso deste homem. Um bocado um fenómeno como Berlusconi, em Itália. As pessoas gostam de modelos destes, está bem de ver, mesmo que tenham mau cabelo. E votam neles e, quanto a isso, nada podemos fazer a não ser – obviamente – reconhecer a legitimidade do seu voto. É tudo.
Os canais franceses de televisão não passaram outra coisa durante o dia de hoje, tal como suponho que os canais portugueses e os de quase todos os países tenham feito. Ontem e antes de ontem foi também assim, aqui. Antes de ontem, a outra notícia mais importante era a reabertura do Bataclan, no dia 12 de novembro, um dia antes de passar um ano sobre os mais recentes atentados em Paris. Inaugura Sting e estão já esgotados os lugares. A par dessa notícia passou uma extensa reportagem sobre os atentados de 13 de novembro de 2015 em Paris, com as famílias das vítimas e com alguns sobreviventes. Foi impressionante ouvir alguns relatos destas pessoas. Mais impressionante do que os discursos de Trump, de Clinton e de Hollande, que foram os únicos que ouvi hoje. Talvez o mundo em que acreditamos tenha sofrido hoje um ataque por parte de um arrivista. Mas talvez o mundo em que acreditamos seja mesmo isso: um mundo em que até alguém como Donald Trump pode chegar a ser presidente dos Estados Unidos da América. Imagino o nome dele escrito entre os demais no Memorial a Lincoln, que visitei em Agosto passado. Ou mesmo um memorial a Trump, quando for o tempo. Imagino e não é bonito, diga-se, mesmo se isto é apenas o reflexo do sistema democrático em que vivemos e de que a América se considera o paradigma. Claro que muito haveria a dizer sobre isto, mas a carta vai já longa.
 
Com exceção do modo como acordei, fiz o mesmo que nos outros dias, percorri as mesmas ruas para chegar ao Ladyss. Fiz um intervalo para lanchar um chocolat chaud et un croissant, ao mesmo tempo que admirava a rapidez com que as nuvens percorriam o céu de Paris. Choveu hoje em Paris e as ruas molhadas sob as luzes dos candeeiros e dos automóveis tornam a cidade mais bonita. Aproveitei que chovia e fui ao cinema. I, Daniel Blake, do grande Ken Loach, que ganhou este ano a Palma de Ouro no Festival de Cannes. O filme é um grande murro no estômago de uma pequeno-burguesa como eu. Passei o filme todo com vontade de ir para a rua gritar contra um Estado que promove a precariedade, que humilha os cidadãos, que os desvaloriza e reduz a nada, até à morte. Passa-se em Newcastle, Reino Unido, mas é verdade que poderia passar-se em todas as cidades de todos os países ocidentais. É um filme a ver, absolutamente. Não apenas porque as intrepretações de Dave Johns e Hayley Squires são magníficas, não apenas porque o Loach é um realizador fascinante, não apenas porque o argumento nos é tão familiar, mas exatamente porque é um murro no estômago da maior parte de nós, os que, se fossemos Americanos e à falta de melhor, votaríamos no ‘menor mal, ou seja, em Hilary Clinton que nada fez, nem o partido que representa, para acabar com as desigualdades sociais nos Estados Unidos. Trump também não, ao que se sabe, mas exatamente, como responsável político, nunca teve essa oportunidade. E foi também isso, esse não ser político, que cativou os eleitores americanos, provavelmente, sobretudo os mais frágeis e desencantados. Nos Estados Unidos como, ao que parece, um dia destes, em toda a parte.

Comments

  1. martinhopm says:

    Terá Trump sido eleito pelo que diz e por:1.ataque frontal ao poder mediático, que apelida de desonesto; 2.denúncia da globalização económica, que considera responsável pela destruição da classe média; 3.oposição aos acordos comerciais (NAFTA, TPP e mesmo a OMC); 4. recusa das reduções orçamentais neoliberais em matéria de segurança social ((veja-se a reviravolta quanto ao Obamacare + promessas de redução do preço dos medicamentos, de ajudar a regular os problemas dos ‘sem domicílio fixo ‘SDF’, de reformar a fiscalidade dos pequenos contribuintes e de suprimir um importo federal que atinge 73 milhões de lares modestos); 5.denúncia da arrogância de ‘Wall Street’, propondo aumentar significativamente os impostos dos ‘traders’ especializados em ‘hege funds’, que ganham fortunas; 6.estar disposto a acordos com a Rússia e com a China; 7.estar consciente de que, dada a enorme dívida soberana, os EUA já não possuem os meios para praticarem uma política estrangeira intervencionista total e eficaz.
    Diga se concorda. Parabéns pela sua apurada escrita. Também por ter possibilidade de viajar, coisa de que estou irremediavelmente afastado, por questões económicas, em especial pelo ‘enorme aumento de impostos’ do Gasparzinho.

Discover more from Aventar

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading