O olho da rua

(Texto do meu filho do meio, Marcos Cruz, que me parece com interesse para qualquer um de nós)
O OLHO DA RUA
Tenho uma loja na Baixa do Porto, uma loja de mobiliário intervencionado. Chama-se Meioconto. Abri-a no fim do passado Verão, pouco depois de ter sido despedido de um jornal em que trabalhei quase vinte anos. Durante esse tempo, confesso, não me preocupei significativamente com o comércio: queria era informar as pessoas, contar-lhes coisas que não soubessem, intervir de forma construtiva na sociedade, contribuir à minha maneira e na escala que me estivesse destinada para democratizar os conhecimentos e os instrumentos individuais e colectivos de análise e de participação cívica, ajudar a cimentar os pilares em que quase todos, no discurso, concordamos que uma sociedade desenvolvida se sustenta. Não me foi possível. Admito que me tenha faltado inteligência, sensibilidade, empenho, capacidade, talento e paciência para contornar os obstáculos com que diariamente deparava na procura de tais propósitos, mas sei bem que, mesmo “viagrando” todas essas qualidades e mais algumas, jamais estaria ao meu alcance perturbar o normal funcionamento da máquina, cada vez mais exclusivamente virada para o comércio.
Dentro de mim foi crescendo uma guerra civil entre o homem e o jornalista, que ou redundava numa doença isquémica ou no que acabou por acontecer: o despedimento. Apercebi-me cedo de que era um corpo estranho naquele organismo, mas a eterna crise – a ideia de que a segurança no emprego se sobrepõe a quaisquer veleidades de realização profissional, socialmente encaradas como caprichos de gente que não sabe a sorte que tem, já estava bem enraizada na consciência colectiva ao tempo da minha entrada no mercado de trabalho – manteve-me ali, atado a todas as desilusões relativas ao jornalismo e a mim próprio, ou ao que fiz de mim ou, nos momentos mais autocomplacentes, àquilo em que o jornalismo me tornou: um cobarde.
Comi a minha cobardia durante anos a fio, diluindo-a na cobardia dos outros, os meus colegas, concordando nas desculpas que fabricávamos juntos como notícias internas, de sinal oposto às externas na sua intenção apaziguadora, benévola. Conformávamo-nos com a legitimidade de assustar os outros para nos acalmarmos a nós, transformando-nos assim num mero degrau da escadaria repugnante dos media, um degrau de baixo mas um degrau, tão sujo como os outros. Ser ou trabalhar, eis a questão que ganhava nitidez a cada novo dia, na mesma proporção em que a ideia de novo dia perdia nitidez. O ser levava-nos a pensar em reportagens pertinentes, a querer conhecer a sociedade, a fazer “reset” para descobrir sem preconceitos ou intuitos prévios, a contrabalançar as corrupções, as injustiças, o sangue, a tragédia e o horror com as histórias de sucesso, os fenómenos heróicos, os acontecimentos positivos, o fazer das fraquezas forças, o lado encantador da sociedade; o trabalhar levava-nos a escavar o crime, a servir interesses e visões particulares, a reproduzir ou antecipar o que os outros jornais publicavam, a reprimir a nossa vontade de pensar livremente, a discutir com gente despótica que dependia da hieraquia como um peixe depende da água, a perder de vista qualquer horizonte social, a engolir nenúfares porque os sapos já tinham ido todos e a participar numa matança galopante de valores matriciais desse conceito rupestre que é hoje a humanidade.
De tempos a tempos ressurgiam-me perguntas antigas, como velas que sopramos e se apagam mas teimam em voltar a acender-se. Do tipo: “Mas se o mundo é tão grande e nele cabem tantas histórias, porque é que as notícias dos jornais, das rádios e das televisões são todas iguais?”. Até me envergonhava com a ingenuidade. Hoje orgulho-me por tê-la conservado, por não ter deixado apagar definitivamente essa vela. Se escrevo este texto é porque, depois de um ano de desintoxicação noticiosa, voltei a sentir, dentro de mim, a vela acesa. Corre-me a escrita como sangue em veias desobstruídas de inibidores de paixão. Já não é água ferrugenta, amarelecida e conspurcada, o que liberto da mente e da alma pela torneira dos meus dedos.
É com a ingenuidade que tinha quando comecei a escrever que, na minha loja de mobiliário intervencionado, pego em coisas antigas e as transformo em peças novas, únicas, comunicantes e acessíveis. É com essa ingenuidade que continuo a pensar em comércio como uma consequência natural da qualidade do que se produz. Felizmente, já não penso no “leitor”, essa entidade abstracta estupidificada até ao limite do irrazoável; agora penso nas pessoas, naqueles que, como eu, gostam de ver respostas para as suas perguntas, gostam de ver respeitada a sua particularidade e integrada a sua voz distinta no coro harmónico que se pretende símbolo e substância de uma sociedade sã. Dou nova vida a valores esquecidos, desprezados pela lei moderna da frieza. Dou via verde aos afectos. Aproximo-os dos objectos, esperando que neles se veja o tanto que podemos fazer por nós.
Desde que cheguei à Baixa do Porto, apercebi-me de que muita gente, antes de mim, já havia reciclado as suas vidas, arriscando os seus subsídios de desemprego em empregos por si criados, empregos virados para fora, para os outros, para a cidade e, em particular, para uma zona da cidade que, se não fosse essa gente, estaria em irremediável declínio. Apercebi-me de que essa gente, maioritariamente jovem, faz o que faz não só por amor à vida, mas muito por amor à cidade. Sem ajudas, sem incentivos, sem reconhecimento. Todos lutamos aqui pela nossa cultura, pela nossa identidade, pelo nosso Porto. O Porto das pessoas. Todos estamos fartos de lutar para engordar quem se esqueceu desse mesmo Porto e, por extensão, deste Portugal sem abrigo. Viemos para o olho da rua para olhar pela rua. Não matamos, não insultamos, não roubamos, não ganhamos concursos, apenas nos empenhamos em ser novas soluções para um velho problema. E por isso não estranhamos não ser notícia.

Comments

  1. Luís Moreira says:

    Parabéns, viu a tempo! Nunca quiz um emprego para toda a vida. Estive num banco, que na altura era o melhor emprego, 25 anos e já tinha gabinete. Quando me levantava de manhã e sentia que ía para “uma morte lenta” despedi-me! Custou- me o casamento! mas, quando raras excepções por muito pouco tempo, fiz sempre o que gostava!

  2. maria monteiro says:

    Pensava eu que não queria um emprego para toda a vida mas acabei por tê-lo. Trabalhar numa fábrica foi um emprego para a vida, foi o emprego da minha vida, dos 33anos da minha vida.
    Enquanto ao Luís lhe custou o casamento a mim custou-me um não casamento. Estive três anos a contratos a prazo, comecei em análises de projectos, passei pela contabilidade, pessoal, informática, estacionei no controlo de gestão, orçamento e plano. Virei para os grandes projectos, ambiente e auditoria interna. Adorava trabalhar, fiz sempre o que gostava mas…. agora aposentei-me e… tenho tanta coisa que ainda quero fazer

  3. graça dias says:

    O sr adão tem piada. faz publicidade a si próprio, a todos os elementos familiares, ao gato , cão e ao passáro. ou melhor dizendo : -” faz a festa, deita os foguetes e apanha as canas”

  4. Fernando Moreira de Sá says:

    Que post extraordinário! Que profundidade! Obrigado pela partilha.

  5. miguel dias says:

    Caro Marcos,
    como eu gostaria de ter a tua agilidade com as palavras para fazer um comentário à altura do teu post. Mas tu sabes que eu sei que tu sabes que eu sei.
    Só acrescentaria ao que dizes uma palavra de profundo, genuíno e sincero agradecimento aos filhos da puta que nos despediram.

    Um grande (aquele) abraço tropical para ti.
    Manda bala

    ps. a converseta de fim de tarde no meioconto tem me feito muita falta.

  6. Carla Romualdo says:

    A Meioconto da rua da Conceição? A sério?! Esta cidade é uma aldeia.
    Excelente texto; de boa árvores bons frutos, já dizia nosso senhor

  7. adao cruz says:

    obrigado a todos