
(pormenor - adao cruz)
O rei vai mesmo nu
Há muito tempo que ando com vontade de desancar nos poetas, nos pseudo-poetas, nos pretensos poetas, entre os quais me incluo.
Lembraram-se de criar um dia mundial da poesia. Como se coubesse na cabeça de alguém que a poesia se poderá enclausurar no irrisório tempo de 24 horas.
Além disso, convenceram-se de que é possível criar canais por onde pretendem deixar fluir aquilo a que chamam poesia: poesia à mesa, poesia no eléctrico, poesia na rua etc.
A poesia existe, a poesia está entre nós, a poesia é. Os grandes predadores da poesia poderão ser aqueles que destroem e matam a poesia, ao tentarem traduzi-la por palavras, ao pretenderem trazê-la para as palavras, ao julgarem que a prendem nas palavras, mesmo que as palavras possam ser o que Marcos Cruz diz neste pequeno texto:
“Desatar até dar nós”
As palavras são filhas do silêncio, rompem-no como um novo ser rompe a sua mãe, não sem dor, não sem perda. Cada palavra é um desafio novo, um início, um indício de fim, uma ilusão de identidade, um cão de casota que corre até esticar a corda. O silêncio testemunha essa loucura. É palavra informe, irrasurável. É a razão da fé, a mãe sem truque, o nada na manga de tudo.”
A poesia não está em cima da mesa, a poesia está debaixo da mesa, ao lado da mesa, em frente à mesa, acessível ao verdadeiro poeta, que é aquele que tem a sorte de a ver e com ela conviver, sem se atrever a traduzi-la em grosseiras palavras escritas em bases para copos e em guardanapos. O que pretendem pôr em cima da mesa poderá ser um arremedo de nada, o cadáver da poesia estrangulada pelas palavras.
A poesia não anda de eléctrico, embora envolva tudo o que está à volta do eléctrico e o próprio eléctrico. Quem anda de eléctrico, pretensamente transportando a poesia, poderão ser os matadores da poesia, lançando ao vento palavras ocas e vazias misturadas com o gemido dos carris.
A poesia está em tudo, até na rua, e quando tentam pescá-la nos anzóis das palavras, mais não fazem do que atirá-la para as ruas da amargura.
O verdadeiro poeta, o que sente a poesia, o que vive a poesia, o que se delicia com todas as manifestações de poesia que nos rodeiam, não escreve poesia e tem horror a quem se atreve a meter o infinito da poesia numa caixa se palavras.
Isto é assim, apesar de não conseguirmos conter-nos, e dentro da nossa mediocridade nos convencermos, diariamente, de que somos poetas!
Mas admitamos o nosso sentimento poético e busquemos as melhores palavras de saudação à poesia, consagradas como estruturas, composições e esquemas de palavras a que chamamos poemas. Não nos esqueçamos, porém, que a par da maravilha da palavra se perfila a nossa incapacidade. Incapacidade da qual emergem, por vezes, palavras bonitas que mais não são do que minúsculas pepitas de poesia nas mãos de frágeis garimpeiros da beleza. Felizes os muito poucos que as encontram, e que sabem resguardá-las não da fraqueza mas da estupidez.
De poetas conhecidos e consagrados(!), de quem não digo o nome, leiam isto que eu vi transcrito em bases de copos, e digam-me se me engano, quando digo que a poesia está debaixo da mesa:
Esta chávena faz-me companhia
Um café pode ser a solução
Ó vida ora cheia ora vazia
Só falta agora o sol banhar-me a mão.
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A minha infância
cheira a soalho esfregado a piaçaba
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãe.
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(…) são as sobras de uma laranja
cortada em dois, sendo que
uma das metades é apenas casca
lembrando a pele que as múmias
costumam ter (…)
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A mãe, se me vê
comer com a mão,
prega-me logo
uma lição.
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Dantes cada época do ano tinha os seus doces próprios.
No Natal as filhós, os brinhóis ( em Lisboa dizem sonhos)
as empanadilhas (ou azevias), e o bolo-rei, no carnaval
as fatias douradas (ou rabanadas) (…)
O Marcos é um belo escritor e o pai tambem. Está na “estrutura helicoidal” comum…
senhor” poeta?” gosta mesmo de si próprio, nada melhor ” desancar” também em si. belo acto
dum ilustre escritor …
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve.
Mas só a que eles não têm
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração
para dois ilustres escritores Adão e Marcos
abraço
maria
Obrigado, Maria, pelo teu apreço. Um beijinho.