Um último cigarro – dedicado ao amigo Adão Cruz

Amigo Adão, eu li os seus textos de hoje (este e depois este) e assenti em silêncio a tudo o que li. Eu sei que reduzi o risco de contrair múltiplas e terríveis doenças. Admito que recuperei o meu paladar e a capacidade de subir sem parar os intermináveis lances de escadas da minha casa e que até, provavelmente, o meu hálito melhorou, embora não me sinta avalizada para afirmá-lo. Eu sei que foi uma decisão adulta, sensata, ecológica, e que pode ter prolongado o meu tempo de vida. Mas eu trocaria todos esses benefícios por só mais um cigarro fumado sem o remorso da fraqueza de vontade nem a angústia da recaída.  Um só cigarro, sem réplica, e eu não me importava de voltar a arfar a meio das escadas.

Eu reconheço que fumava de mais: nos dias bons um maço completo, nos maus perdia a conta aos cigarros que fumava. E só deixei por completo o tabaco porque estava grávida. Se estivesse em causa apenas a minha saúde teria continuado a fumar sem hesitações. Não há racionalidade no vicio, já sabemos, a compulsão exige ser comprazida. Mas eu justificava-me alegando que o tabaco, com todos os seus malefícios, não induz estados alterados de consciência, não turva tanto assim o discernimento. Não provoca alucinações, não nos leva a fazer figuras tristes, desde que não se considere triste ser a única pessoa a sair da camioneta na paragem de descanso a meio de uma viagem Lisboa-Porto, às três da manhã, com 1 ou 2 graus lá fora, e um vento de cortar (daí que há quem diga que os fumadores morrem mais cedo não devido ao tabaco mas às condições a que são expostos, sempre a apanhar correntes de ar). Enfim, que há dependências mais nocivas, quero dizer. E a companhia digna e silenciosa de um cigarro fumado ao cair da noite, quando se pondera uma decisão difícil ou se lambe a ferida de um desengano? E o fumo conspiratório de uma reunião de amigos, quando o brilho das imagens que se lançam é proporcional à espessura da nuvem que nos vai cobrindo? E o alívio, ainda que momentâneo, do cigarro da espera, aquele que vem aplacar a ansiedade dos grandes momentos, aquele que parece aquietar os batimentos cardíacos, por muito traiçoeiro que isso seja, eu sei, amigo Adão, na verdade faz o contrário? Tudo isto se perde. E parece certo que as vantagens do abandono do tabaco não se vêem de imediato, não.  Vão chegando pouco a pouco, como que para testar a resolução do ex-fumador. Tudo isso acabou para mim. Não me permito sequer colocar a hipótese de voltar a fumar. Mas, juro-lhe, amigo Adão, se fosse apenas um, sem hipótese de recair na armadilha da dependência…

Comments

  1. Adão Cruz says:

    Amiga Carla, obrigado pelo teu magnífico texto. Deixa-me tratar-te por tu, pois sinto mais fundo esse aspirar do fumo de um cigarro digno e silencioso, ainda que virtual. A tua história é a minha, exactamente a minha. Fui fumador inveterado. Na guerra colonial cheguei a fumar três maços por dia. Estive sete anos sem fumar. Ao fim deste tempo, qando fazia uma urgência nocturna no Hospital de Santo António, e arrastado pela “sedução” da única enfermeira que nessa noite me apoiava, meti um cigarro à boca. Passei daí às cigarrilhas (15 por dia). Com muito sacrifício acabei de vez. Tantas feridas de desenganos eu lambi, Carla, que o cigarro me apareceu inúmeras vezes como um anjo salvador. Por isso não sou nem nunca fui fundamentalista, em nada e também nesta matéria. Os meus doentes confirmam. Compreendo-te tão bem, Carla! Se fosse apenas um! Esse ou esses tenho-os reservados para o dia em que descobrir que a minha vida está a entrar na contagem final. Mais uma vez, Carla, obrigado pelo testemunho tão sincero e bonito. É tão bom ouvir as cordas do noso íntimo quando pecutidas pelos dedos da verdade.

  2. Luis Moreira says:

    Carla, o teu texto é bonito de mais para tão ruim defunto. Isto não fica assim!

  3. Pecutidas é gralha.

  4. carla romualdo says:

    Claro que o Adão, que já mostrou há muito que é um médico que honra a tradição do médico humanista (que alia o saber científico ao cultivo das artes e ao estudo da alma humana) só podia ser compassivo com as fraquezas dos pacientes. Ainda bem que me entendeste (aceito de bom grado e retribuo o tratamento por tu). Um abraço.Luís, tomo nota, fica prometido aquele que tu já há muito mereces. Um abraço

  5. Carla,O teu caso (e do Adão) é o meu. Um maço por dia e partilhava muitos dos meus pensamentos com a levitação azulada que saía do cigarro do momento. Deixei de fumar à cinco anos e podia concluir este comentário da mesma forma que terminaste o teu post.

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