A receita desta nova série é muito simples: pego num poema meu, já publicado ou inédito, e explico em breves palavras a sua génese, o sentimento ou o acontecimento que o provocou. Uma advertência: alguém me disse que devia chamar à série «poemas com estória». Há empréstimos da norma brasileira e do português falado no Brasil que aceito e outras que não. Essa de estabelecer diferença entre História, para definir a ciência que relata os factos públicos, militares ou políticos de uma nação ou estado, e estória, para qualificar a arte da ficção narrativa, diferença que, grande parte das pessoas (algumas muito respeitáveis) adoptou com o entusiasmo de quem descobriu a pólvora, a mim não me apanha. Uso o termo história nas duas acepções. O facto de em inglês se usar History e story, respectivamente, a mim não me diz nada. A única diferenciação que aceito (desnecessária pois, pelo contexto, logo se percebe do que estamos a falar), é utilizar o H maiúsculo no caso da disciplina científica. Em suma, gosto muito de ouvir falar os brasileiros a falar com o seu sotaque e expressões próprios e não gosto nada de ouvir os portugueses a macaqueá-los. Está explicado – poemas com história.
Francisco Fanhais cantando Canção para Maria (Queria Um País de Sol Para te Dar) na FNAC do Fórum Almada.
O primeiro poema que apresento nesta série, intitula-se Queria um país de Sol para te dar e foi publicado no meu livro A Poesia Deve Ser Feita Por Todos. Escrevi-o no presídio do Reduto Norte de Caxias em 1968, dedicado a minha mulher. O Francisco Fanhais musicou-o e ainda hoje o canta com frequência. Mudou-lhe o título para Canção para Maria. Há uma história interessante relacionada com este poema, para além do facto das circunstâncias em que foi escrito e da forma como, com muitos outros textos, saiu comigo quando fui posto em liberdade, após seis meses de cativeiro – dentro de sapatos, entre a palmilha e a sola: o Francisco Fanhais cantava o poema por muitos lados e antecedia-o sempre da mesma história – o Carlos Loures uma tarde disse para a mulher: – Vou até ao café, venho já! – e o Fanhais fazia uma pausa e rematava – voltou passados seis anos! Isto tinha-se passado assim, eu de facto fui preso no café, mas foram seis longos meses e não seis anos. Quando, finalmente, já depois do 25 de Abril conheci pessoalmente o Fanhais, pedi-lhe para ele fazer a rectificação. Aqui vai o tal poema:
Queria um país de Sol para te dar
Para a Maria Helena
Queria um país de Sol para te dar,
com amantes e crianças nos jardins,
pássaros livres a cantar nas árvores
e a luz em liberdade pelas ruas
– as coisas nos lugares onde as sonhámos
e não nos sítios onde estão,
com armas aperradas a guardá-las.
Um país onde sulcássemos as límpidas manhãs
com sorrisos claros vestindo as faces.
Um país sem muros, sem medo
nem carimbos nas cartas que escrevemos
e ouvidos nas palavras que dizemos,
em segredo.
Mas, meu amor, nascemos cedo,
chegámos ainda a tempo de viver
este tempo que vivemos
com lágrimas ocultas no sorriso,
a raiva escondida nas carícias
e uma secreta esperança aprisionada
nos nossos corações aprisionados.
Viemos ainda a tempo de sofrer
Este tempo que sofremos
dia a dia e que sulcamos,
com os beijos vigiados,
com os nossos segredos desvendados,
com este amor amputado e prisioneiro
com que amamos.
Meu amor, não desertemos
Do tempo e do país em que nascemos
(e viver outro tempo dentro deste
ou estar fora do país
dele não saindo,
também é desertar).
Já que foi este o tempo que nos coube,
já que foi este o país que nos deixaram,
temos de conquistar o Sol que os ilumine,
roubando-o ao silêncio e à mordaça
que nos sufoca a voz – Não desertamos
– o ódio, o medo, a morte
que fujam, que desertem
se o amor os insulta e ameaça.
– Nós ficamos!
Com ao companheiros
e o amor dos companheiros,
o amor será mais forte
do que o ódio, do que o medo, do que a morte.
A luz também se constrói com os nossos beijos,
com as palavras clandestinas que escrevemos,
aquelas que a opressão não vê nem ouve.
A luz também se constrói com os nossos filhos,
eles tingem de luz nova
as sombras que com ódio vêm pôr
entre as carícias, os beijos e as palavras.
Neles se erguerá a luz para amanhã
e a liberdade prisioneira nos nossos corações
inundará de Sol as ruas,
meu amor.
Nota final: Este poema também ficaria bem na minha outra série Apontamentos & Desapontamentos. A democracia, esta «democracia», desapontou-me. Em todo o caso, não alimento saudosismos estúpidos por esse tempo de odiosa e criminosa repressão. Desse período negro, só invejo nostalgicamente a «mocidade perdida», como diz o faduncho.
Eu a julgar que estava “up-to-date” e afinal não passo de um seguidor de “acordos ortográficos”…A Helena bem merece,pá! Belo poema.