Desigualdades socioeconómicas e sucesso educativo ou a descoberta da pólvora

Saiu um estudo da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, intitulado Desigualdades socioeconómicas e resultados escolares – 3.º Ciclo do Ensino Público Geral.

Na p. 2, podemos ler: “Em termos de resultados e conclusões, o estudo sugere que em Portugal há uma relação muito forte entre o desempenho escolar dos alunos e o meio socioeconómico dos seus agregados familiares. Por exemplo, entre os alunos cujas mães têm licenciatura ou bacharelato, a percentagem de “percursos de sucesso” 2 no 3.º ciclo é de 71%, enquanto entre os alunos cujas mães têm habilitação escolar mais baixa, equivalente ao 4.º ano, a mesma percentagem de percursos de sucesso é de apenas 19%.” Leia-se, a propósito, a notícia do Público: “Quando a mãe tem a 4.ª classe, só 19% das crianças têm um percurso limpo na escola”.

Não nego a importância destes estudos, mas a verdade é que a correlação entre o desempenho dos alunos e o meio socioeconómico/sociocultural em que vivem é conhecida e reconhecida há vários anos, porque o assunto está estudado e porque os professores confirmam isso todos os dias.

Curiosamente, no mesmo estudo, há uma preocupação em repetir a ideia de que isso não equivale a destino:

as estatísticas apresentadas no estudo sugerem também que o nível socioeconómico não equivale a destino, ou seja, não determina de forma inapelável o desempenho escolar dos alunos. (p. 3)

Apesar de estas disparidades muito acentuadas mostrarem que as condições socioeconómicas das famílias têm um impacto elevado nos resultados escolares dos alunos, um impacto porventura maior do que o desejável, ao mesmo tempo é necessário salientar que as condições socioeconómicas não equivalem a um destino traçado, pois existem outras influências e fatores importantes em jogo. (p. 13)

Dos resultados da nossa análise subsiste, todavia, a importante mensagem de que o nível socioeconómico não equivale a destino, ou seja, não determina de forma inapelável os resultados dos alunos, escolas e regiões.

Vamos lá a repetir: é claro que há escolas melhores do que outras, porque há directores melhores do que outros e professores melhores do que outros. No entanto, as escolas públicas, graças a vários espartilhos legais, não têm autonomia suficiente para tentar encontrar soluções que se revelem milagrosas ou muito diferentes umas das outras. Basta ver que não podem, por exemplo, definir o número mínimo de alunos por turma ou decidir a contratação de funcionários ou de técnicos considerados necessários.

Uma sociedade equilibrada e solidária é aquela em que os vários agentes procuram contribuir para o esbatimento do efeito socioeconómico/sociocultural no sucesso dos alunos. Isso prende-se com a melhoria das condições de trabalho nas escolas: entre muitas outras medidas, é fundamental que o número de alunos por turma diminua e que haja recursos humanos suficientes, de modo a que seja possível um acompanhamento mais próximo dos alunos com maiores dificuldades. E não vale a pena dizer que as escolas têm recursos humanos em número suficiente, o que é mentira, e, portanto, não vale a pena fingir que isso não aumentará a despesa do Estado com Educação. É claro que, face a esta evidência, aparecerão sempre alguns filhos do excel que se limitarão a dizer que o investimento médio em Educação em Portugal é igual ou superior ao de outros países em que existe sucesso educativo ou que os professores podem trabalhar mais horas e outros disparates.

O comunicado do Ministério da Educação, comentando este estudo, contém algumas boas intenções, coisa muito apreciada no Inferno. Realce-se, pela positiva, entre outros aspectos, o reconhecimento de que é necessário realizar uma articulação com o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, “no combate à pobreza na Educação.”

Confesso, no entanto, que senti um arrepio, ao ler, no último parágrafo do comunicado, a expressão “boas práticas”, usada frequentemente por uma Maria de Lurdes Rodrigues de péssima memória, especialista em cosmética política e erigida em Senadora da Educação. Com esta expressão, a referida senhora referia-se a escolas que deveriam servir de exemplos às outras, tendo o cuidado de não as identificar e de deixar tudo na mesma. Tudo o que faça lembrar esta figura sinistra é mau presságio e garanto que não sou supersticioso.

Comments

  1. Eu fico com urticária quando oiço ou leio sobre “as boas práticas” e a “escola a tempo inteiro”

    Também fico com urticária quando oiço ou leio sobre o “anti-eduquês” e a “implosão” do MEC.

    Calhando, sou supersticiosa, sei lá…..

    .

  2. Afonso Valverde says:

    É a redescoberta da pólvora. Isto é sabido. Difícil é contrariar esses fatores e fazer com que quem não tem mãe “atenta” possa evoluir enquanto pessoa em permanente formação.

  3. Thief says:

    Fico intrigado com o caso de Setúbal, parece claramente um outlier.

    • E Lisboa também foge à regra dos alunos com apoios e mães pouco escolarizadas, talvez por causa do tempo que ambos os pais passam fora de casa no trabalho e relações relacionadas. Há quem demore quase duas horas em cada sentido, fora o horário normal de trabalho e algum tempo extra.

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  2. […] o sucesso escolar: “o contexto socioeconómico continua a ser determinante.” Relativamente a um estudo anterior, relativo ao terceiro ciclo, já o ministério tinha reconhecido o […]

  3. […] de se apontar a “origem socioeconómica” como constrangimento, considera-se, na prática, que as escolas são as únicas entidades que têm a responsabilidade de […]

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