Lettres de Paris #25

Un combat perdu

lembram-se de há uns dias ter dito que em frente ao Collège de France, nas escadas que se sobem a partir da Rue des Écoles estava escrito no chão ‘la sociologie est un sport de combat’? Nunca mais tinha passado naquele sítio desde esse dia. Hoje passei e olhando para o chão, vejo em frente a ‘combat’ a palavra ‘perdu’, a vermelho, seguida de vários pontos de exclamação. Fiquei a olhar para aquilo até que me resolvi a tirar uma fotografia. Fui até à esquina com a Rue Jean de Beauvais e depois subi a pequena Rue de Lanneau a pensar na palavra que acrecentaram á frase de Pierre Bourdieu. ‘Perdu!!!’. ‘Un combat perdu’, três pontos de exclamação. Creio que o autor da palavra a vermelho não estaria exatamente a pensar na sociologia, como área científica, mas no que ela permite revelar e no que os decisores podem (ou não podem) fazer com aquilo que o sociólogo revela. Aí darei razão ao autor do acrescento. A maior parte das vezes, apesar de tudo, também me parece que esse combate está perdido. Basta ver o que se passa à nossa volta, onde quer que nos encontremos. Nas grandes cidades, principalmente. Paris, como grande cidade que é, ou como conjunto de cidades que é, está cheia de mendigos e sem-abrigo. Já o disse de outras vezes, mas reparo cada vez mais neles ou serão eles que são cada vez mais.
 

Quando vou para o Ladyss, sobretudo se vou pelo Boulevard Saint-Michel até à Rue des Écoles encontro três ou quatro pedintes. Quando regresso, encontro outros, geralmente mulheres, com crianças. Os da ida são geralmente homens e estão acompanhados frequentemente por cães pequenos. Aquilo entristece-me logo de manhã e antes de entrar em casa, à noite. Tenho um misto de vergonha e culpa e revolta. A culpa e a vergonha, mas sobretudo a culpa, são filhas diretas da minha educação católica, pois claro. Tenho quase tudo o que quero, posso comprar livros e ir ao cinema, e estar em Paris e ir de férias aqui ou ali. Tenho uma vida relativamente confortável, até ver pelo menos. Tenho trabalho e gosto dele. E estas pessoas nada têm. Eis de onde vem a minha culpa. Sim, sei que é uma culpa estúpida e que não sou eu, ou as esmolas que lhes poderia ou poderei dar, que vão resolver o problema dos sem-abrigo e dos mendigos em Paris, em Lisboa ou onde seja. Mas sinto esta culpa, que querem? Como se eu não tivesse direito a ter o que eles jamais terão. Desde pequena que o avistar de um mendigo (e quando era pequena via muito menos) me fazia ficar quase à beira das lágrimas. A educação católica é uma tragédia já se vê. A culpa. Sempre a porra da culpa. Eu empurro-a para debaixo da minha racionalidade toda, mas ela arranja maneira de vir sempre ao de cima, especialmente nestas situações. Paris é uma festa para os meus católicos sentimentos de culpa, é o que vos digo.
 
A outra parte do que sinto é revolta. Revolta porque o Estado, aqui como em Portugal, como noutros sítios, parece ser cada vez mais incapaz de lidar com estas situações. Sim, não é a nossa culpa ou a nossa caridadezinha que vai resolver o problema das pessoas que dormem nas esquinas, num degrau mais largo de um prédio, nos bancos do metro ou das estações de caminho de ferro. Pelo menos esta questão parece-me mesmo ‘un combat perdu’. Nunca me esqueço de há uns anos na Gran Via em Madrid, estarem tantas pessoas a dormir nos passeios largos que era difícil caminhar sem tropeçar nelas. Para mim isso é a imagem deste combate perdido. Uma imagem difícil de esquecer, como muitas outras. Como a senhora que está sentada no chão, com duas crianças pequenas, ao lado das caixas multibanco da esquina do Boulevard Saint-Germain com o Boulevard Saint-Michel. Parece romena, tal como romena parece a que se senta do outro lado da estrada, ao lado do quiosque dos jornais, também acompanhada de crianças pequenas. ‘Un combat perdu’, parece mesmo.
 
Ontem quando fui jantar ao Le Saint-André, uma família inglesa de 4 elementos (o casal e duas filhas já adultas) falava com o empregado simpático (o que fala português do Brasil com sotaque francês) em inglês (o empregado é poliglota mesmo) sobre isto e aquilo. Eu ia ouvindo a conversa aqui e ali. Uma das raparigas diz ao empregado que há muitos pedintes em Paris. Ele diz que sim. Ela acrescenta que muitos são mulheres com crianças pequenas. Ele exclama: ‘ah, isso são romenas’, como se não fosse um problema dele, nem da França, nem nosso, nem da Europa. Ou como se ‘serem romenas’ fizesse delas um problema menor e a que não vale a pena dar muita atenção. A rapariga perguntou ainda se em França não havia protecção de menores. Que sim, respondeu ele, mas ‘são romenas’. ‘Un combat perdu’, portanto. O empregado é simpático e parece boa pessoa, não me interpretem mal. Ainda hoje vinha eu da Boulangerie da Rue Saint-André des Arts e passei em frente ao café, ele estava na esplanada a servir um café a alguém e disse-me logo: ‘Bouuua noitche, como está você? Muito béem?’. Acenei-lhe e disse-lhe que sim e boa noite. Ainda ontem quando eu paguei a conta e lhe disse boa noite, ele disse aos ingleses que eu era portuguesa (e os ingleses exclamaram em coro: ‘ah Lisbon, Lisbon, Lisbon’, entre sorrisos). O empregado é realmente simpático, não me interpretem mal, repito. Mas se eu fosse romena, como são as senhoras que pedem esmola, com as crianças, nas ruas de Paris, sabe-se lá apanhadas em que teias, tenho praticamente a certeza que ele me cumprimentaria com menos alegria e simpatia. Se me cumprimentasse de todo.
 
Os combates perdem-se assim, pela indiferença face aos outros porque ‘são romenos’, simplesmente. Ou ‘pretos’, ou ‘deficientes’, ou ‘pobres’ ou ‘desempregados’. Tenho mais medo dessa indiferença do que do meu sentimento estúpido de culpa. ‘La sociologie ne peut pas être un combat perdu’. O que ela nos revela, sobretudo, também não. Sei de sociólogos que se acomodaram, por já não sentirem a estúpida da culpa ou por já não terem, o que é incomparavelmente mais grave, capacidade crítica, perdidos que estão nas ribaltas várias dos também vários poderes. Conheço alguns, sim. Mas não vale a pena estar agora a falar deles. Prefiro falar das ‘romenas’ por que são elas o combate que interessa.

Comments

  1. Paulo Só says:

    Os franceses dizem “romenos” para não dizerem “ciganos”, o que seria considerado racista. O problema dos ciganos romenos vai, segundo creio, além da pobreza. Transformou-se num negócio e num estilo de vida. Assim mesmo é claro que é vergonhoso termos de conviver com essa verdadeira escravatura na UE, de que a Roménia é parte integrante.

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