Os bons, os maus e o comboio

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Dou por mim parado na estação de Coimbra B e recordo-me do dia em que vi, pela primeira vez, o João José Cardoso. O João José, a Noémia e o Ricardo, a Carla e o petiz, o Dario, o Orlando e o Nabais e acho que, do pouca-terra que partira de Campanhã, éramos estes. Em Coimbra, naquele belo tasco forrado a retalhos de individuais de papel, com palavras de ordem e devaneios boémios, conheci mais uns quantos. Se a memória não me trai estava lá o Valada, a Eva, o Jorge e o Fernando, que chegou mais tarde. Um dia bem passado, bem regado e de pança cheia. Um raro dia de convívio em que ocupamos o mesmo espaço físico, não descurando todos os dias em que nos encontramos, virtualmente, para arquitectar conspirações, parvoíces e coisas sérias.

Perder o João, que não conheci tão bem quanto queria, causou-me uma dor que não esperava, acima de tudo porque, até perceber aquele maravilhoso mau humor, entendia que o tipo não ia com a minha cara e eu não morria de amores por ele. Lidar com a morte do João, com quem falava quase todos os dias, a quem frequentemente recorria e por quem nutria um respeito e uma admiração quase-religiosa não foi nada fácil. E continua sem ser.

Durante a minha curta – mas já nem tanto – existência, poucas foram as vezes em que tive que lidar com a morte, menos ainda as que me deixaram de rastos. Perdi o meu avô paterno, ainda novo, com 15 anos. Ele tinha 91 e foi embora em paz, depois de uma longa caminhada. Talvez por isso, e pelo facto de ser tão novo, a dor passou mais depressa. Aos 23 perdi a minha tia Margarida, um ser humano maravilhoso que exalava amor e afecto. Foi o primeiro grande choque da minha vida, não só porque a adorava, mas também por partir tão nova, vítima de uma doença sinistra, à qual tentou resistir, sem sucesso. Que falta que ela nos faz.

Seis anos depois, aos 29, faz hoje exactamente três anos, perdi outro João. O Jon. Não senti, até hoje, choque maior que ver um amigo, com apenas 25 anos, ser levado por um cancro exótico que nem os próprios médicos conseguiram perceber. Uma pessoa que irradiava alegria e boa disposição, um músico promissor que não desistiu do sonho até que a doença o confinou a uma cama de hospital, um amigo íntegro e honesto, violentamente honesto, que era novo demais para nos ser retirado.

Com tanto filho da puta a habitar o planeta Terra, é mesmo muito difícil aceitar que nos levem as pessoas de quem mais gostamos. Mas a morte bate a todas as portas e não há excepção divina ou metáfora espiritual que nos safe dela. Do pó viemos, ao pó voltaremos, por muitas indulgências que nos tentem vender. Resta-nos aproveitar enquanto cá estamos, vivendo intensamente. Porque se nos vamos fiar em paraísos e haréns com 40 virgens, num mundo onde um jovem de 25 anos é ceifado no espaço de meses enquanto incontáveis criminosos vergam a humanidade à ditadura do dinheiro e da ganância, vivendo vidas longas e desafogadas, imunes à lei e a qualquer tipo de consequência, estamos bem lixados.

Estou de volta à estação de Coimbra B. Passaram 12 horas desde que escrevi o primeiro parágrafo deste desabafo. Recordo o comboio e o almoço de 2013, o João José com cara rezinga, esforçando-se para não soltar um sorriso que o desmascarasse, a esperar os aventadores à saída do comboio, nesta mesma estação. O João que tanto me deu na cabeça e que tanto me incentivou e inspirou. Recordo o meu avô, que me dava sempre 1000 paus, que reinava na sueca e que só queria a nora, minha mãe, para o levar ao oftalmologista. Recordo a tia Margarida, amável e carinhosa, com longos abraços e uma ternura sem fim. Recordo o João, no café, na Casa do Rio, na Zambujeira ou nas Azuraras, na minha casa ou na dele. O João armado em DJ, o João com uma dor nas costas, o João a encher o palco, com centenas de mãos no ar à frente dele. O João a rir, apesar das dor nas costas, a dizer parvoíces e a mudar o tom de voz para a parvoíce ficar mais parva. O João traquina mas de coração puro. O João com uma dor nas costas. A puta da dor nas costas. O João que, como o meu avô, a minha tia ou o João José, já partiu. E tantos filhos da puta que ainda cá estão, sem que haja um comboio que lhes passe por cima.

Foto@ZAP.aeiou

Comments

  1. Afonso Valverde says:

    Agradeço poder ler um texto assim, cheio de humanidade.
    Circunstâncias da vida, João.
    Não decidimos grande coisa na natureza física humana. Herdamos os genes, o restante do seu crescimento podemos cuidar melhor ou pior. Há sempre alguma imponderabilidade.

  2. António Mendes says:

    Espetacular! Parabéns!

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