Por essa época, lá pela década de 1930, havia fundado, em conjunto com outros sambistas, aquela que viria a ser a mítica Estação Primeira de Mangueira, a mais famosa escola de samba do mundo, e havia sido ele a escolher como símbolo as cores verde e rosa que ainda hoje a identificam.
Era também já muito conhecido no Rio como sambista e cantor e algumas das suas composições tinham sido interpretadas por gente como Carmen Miranda ou Araci de Almeida.
Mas na década de 1940, todas as tempestades do mundo se abateram sobre ele: perdeu a mulher, vítima de um ataque cardíaco, contraiu meningite, zangou-se com alguns dos velhos amigos da Mangueira. E mergulhou numa década de esquecimento e solidão, ao ponto de nesse período se terem gravado sambas em homenagem àquele que todos julgavam morto. Ia já a meio a década de 1950 quando o reencontram, afastado da música, a trabalhar como lavador de carros. Graças ao empenho do jornalista Sérgio Porto, também conhecido como Stanislau Ponte Preta, volta ao meio musical e recomeça a compor.
A partir daí, surgirão novos sambas, o reconhecimento pelos pares e pelo público, e até um novo amor, que o acompanhará até à morte. Com que fantasmas se bateu Cartola nos seus anos de negrume? Morto para o mundo que o conhecia, solitário, enfraquecido pela doença, terá encerrado o seu coração à música ou palpitaria ela a cada instante, nutrindo-se da desgraça e guardando-se para o dia em que viria a florescer uma vez mais?
Hoje cruzei-me duas vezes com um homem que dormia no chão. O local era insólito para ser o refúgio de um sem-abrigo e o homem mais parecia ter ficado a dormir ali para curar uma bebedeira que não o deixava ir mais longe. Eu passei apressada para cima, passei apressada para baixo, e o homem continuava a dormir. Soube depois que alguém chamou o INEM e o levaram.
E não pude deixar de carregar de volta a casa uma pontinha de culpa. Talvez fosse um bêbado em quem todos os apressados da cidade não tiveram tempo de reparar. Mas lembrei-me, entretanto, do Cartola e quem pode garantir que o bêbado não seria afinal um génio açoitado pela desgraça, à espera no passeio, com a cabeça tombada sobre o ombro, a boca aberta e um fio de baba a correr-lhe pelo queixo, de uma segunda oportunidade?
E que poderia, também ele, erguer-se a custo do chão e sair cantando:
“A sorrir / eu pretendo levar / a vida / Pois chorando / eu vi a mocidade / perdida. / Finda a tempestade / o sol nascerá. / Finda esta saudade / hei-de ter outro alguém / para amar.”
Que maravilha, Carla! Em tempos viveu na rua, julgo que em Braga (Gumarães?) um homem de grande saber (poeta?) Não me lembro do nome. Era ajudado por gente da cultura e que nunca quiz abandonar aquele estilo de vida. O génio paga-se muito caro!
Curiosamente, hoje, pela manhã, ouvi esta canção na voz de Nara Leão. A música de Cartola é excelente e tenho por aqui esta mesma canção cantada também pelo autor .Para além desta referência, o que me atraiu no seu texto foi um aspecto que nele é fundamental – a desumanização. O ser humano encontra-se num momento gravemente trágico. Quando não conseguimos aproximarmo-nos do outro, certamente estamos a afastarmo-nos de nós próprios.