Lembrar um mestre

Por estes dias tenho pensado muito em George Steiner. A morte dele, há precisamente um ano, fez antever um 2020 que nada trazia de bom.

Steiner é uma das presenças intelectuais mais assíduas na minha vida. Não há semana que passe sem que eu leia qualquer coisa que ele escreveu ou disse. A longa entrevista ao programa Beauty and Consolation, os artigos no New Yorker, excertos das Dez Razões para a Tristeza do pensamento estão nos favoritos do meu computador, na pastazinha onde escrevo passagens que me marcam. Antes do confinamento, comprei alegremente as quatro entrevistas a George Steiner feitas por Ramin Jahanbegloo e publicadas pela VS.

Acusado frequentemente de snobismo – uma questão que das várias que ele suscita é a menos interessante – Steiner entendia algo de muito importante sobre o trabalho intelectual: ele é suposto ser díficil. A literatura, por exemplo, é um constante diálogo entre diversas formas de pensamento, entre várias personagens e enredos e formas narrativas, e só a leitura incansável nos pode transmitir a plenitude de determinado livro ou história (estória).

Li vários artigos extraordinários sobre Steiner depois da sua morte. Mas o mais notável, pela sua compreensão da obra e do homem, foi o de Diogo Vaz Pinto no Jornal I em Dezembro de 2020:

Dotado de uma abrangência incomparável, move-se com uma elegância e uma desenvoltura que nos absorvem, com aquela capacidade de aceder à realidade como se a atraísse a um ínvio argumento, ressaltando algum padrão inusitado, aspectos finos e que traduzem uma qualidade mítica numa razão de outro modo insuportável. Deste modo, ensina-nos a perdoar à vida, e até à condição humana “o facto de ser a coisa indiferente e pontual que é”. Steiner diz-nos que as artes da compreensão (hermenêutica) são tão variadas quanto os seus objectos, e que “não há nada de mais exasperante na condição humana que o facto de nós podermos significar e/ou dizer seja o que for”.

 

Diário da quarentena – A vida em tempos de Covid-19

Coisas que me ocorrem durante o auto isolamento:

  • Estou a adorar ver toda a gente fazer videoconferências de phones e à frente de estantes com livros. Espero que continue até depois de isto acabar. Deixem de ir a estúdios de televisão. Sejam o vosso próprio canal de Youtube.

  • Ocorre-me também que nunca cheguei a falar do documentário do Herzog sobre o Gorbachev. Vejam. Estará algures na internet (Netflix?). Extraordinário porque ele – Gorbachev – o é, e porque Herzog o tem como herói. Herzog começa por lhe dizer que é alemão e que o primeiro alemão que Gorbachev conheceu provavelmente queria matá-lo. Gorbachev ri-se e desmente, dizendo que os primeiros alemães que conhecera eram seus vizinhos, muito simpáticos, e davam-lhe doces. Extraordinário também pela frase do pai de Gorbachev após ter chegado a casa da Guerra, we fought until we ran out of fight. That’s how you must live. Extraordinário, também, e talvez sobretudo, pela forma como Gorbachev fala da falecida mulher.

[Read more…]

Canções Históricas

 

Te Deum, Marc-Antoine Charpentier. 1688

 

Algumas notas sobre a Abstenção:

  •  Estas eleições marcaram a maior taxa de abstenção de sempre em Democracia em eleições legislativas, fixando-se nos 45.5% para os residentes em Portugal (votos no estrangeiro ainda não foram contados, mas irão certamente aumentar a taxa).
  • A abstenção em Legislativas tem vindo gradualmente a subir desde as eleições para a Constituinte em 75. Curiosamente, desde 75 até agora nunca votaram menos de 5 milhões de eleitores. O problema é que o número de recenseados aumentou exponencialmente de 6.220.784 em 1975 para 9.682.552 em 2015.

[Read more…]

O que dizer deste livro?

Para comemorar os cem anos da Revolução Russa, decidi-me a ler um livro que, segundo um amigo marxista, era o preferido da CIA. A responsabilidade desta leitura não deve ser atribuída apenas à Revolução, mas também a George Steiner que me despertou a curiosidade pela figura de Pasternak quando nos conta a história que relato neste texto que escrevi, após um simpático convite do Pedro Correia.

Yuri Andreevitch Jivago é nos apresentado em criança a chorar a morte da mãe. Abandonado pelo pai, o rapaz é entregue a um tio e a amigos que o sustentam e educam. A facilidade com que ele escapa à pobreza contrasta com a vida difícil de Larissa após a morte do pai. Apesar dos avisos sobre a quantidade de personagens que romances russos contêm, Doutor Jivago centra-se sobretudo nestas duas personagens. Ligados, desde a juventude, por uma série de coincidências lamentáveis, Larissa e Yuri vivem paralelamente numa Rússia dividida por extremas desigualdades sociais, até que se encontram na Primeira Guerra Mundial, onde a igualdade da situação – a morte num campo de batalha é para todos – os une.

[Read more…]

A queda da Casa Golden

 

Sagas familiares são um tema comum na literatura. O declínio de uma família que acompanha o declínio de uma sociedade também não constitui novidade. Dos Maias aos Buddenbrook passando pelos Karamazov, cada geração tem a família que merece – e o respectivo declínio. A nossa, aparentemente, merece os Golden e felizmente fez algo de bom para merecer Salman Rushdie como cronista.

A Casa Golden (The Golden House em inglês) parte da narrativa de um aspirante a cineasta nova iorquino, nascido numa família de humanistas que simbolizam tudo aquilo que de bom havia no mundo pré 11 de Setembro. A tolerância, a fraternidade, o secularismo, a crença no progresso, valores que Rushdie considera basilares e universais. Sendo universais, todavia, são também – e especialmente – americanos. Foi nos Estados Unidos que Rushdie encontrou o apoio necessário na sua batalha contra o fanatismo e o ódio. Como gesto de agradecimento, tornou-se cidadão americano.

[Read more…]

Da boa crítica literária

Numa altura em que tantas críticas se fazem ao jornalismo, creio ser igualmente importante sublinhar o que há de bom na imprensa. Algo que tem vindo a melhorar nos últimos anos, inclusive pelo acesso aberto aos artigos, são as secções de literatura de alguns jornais portugueses, notavelmente as do Público e as do Observador.

Nas últimas semanas, tive a sorte de encontrar excelentes críticas a livros. Excelentes porque me convenceram a comprar os livros que não planeava ler e aos quais não prestei grande atenção. Excelentes também porque estão exceptionalmente bem escritas.

[Read more…]

Helmut Kohl, 1930-2017

Caro Helmut Kohl,

Obrigada,

Uma Cidadã Europeia.

O Cidadão Ilustre

Sempre achei a máxima “nunca voltes ao lugar onde foste feliz” um pouco errónea. Seria muito mais útil para todos os envolvidos dizer “nunca voltes ao lugar onde foste infeliz”. Infelizmente, Daniel Mantovani, o primeiro Nobel da literatura argentino, decide fazer precisamente isso.

[Read more…]

Uma volta ao mundo em 197 livros – A

1- Afeganistão-Argélia

 

Angola

Bom dia Camaradas, Ondjaki. Caminho.

A história de uma Angola corrompida vista através de os olhos de uma criança feliz.

[Read more…]

Uma Volta ao Mundo em 197 livros

Há uns tempos dei com um artigo sobre uma rapariga paquistanesa de 13 anos que começou um projecto online com o objectivo de ler um autor de cada país do mundo. Isto é mais difícil do que parece dado o número de países que existem e o facto de muitas vezes não termos sequer traduções das línguas originais.

De qualquer maneira pareceu-me uma ideia extraordinária e resolvi por isso roubá-la e aplicá-la aqui no Aventar. Por razões várias, não consigo agora estar a ler todos os livros que irei publicar. Vou ter de me contentar com uma lista e um pequeno resumo.

Comecemos então pelo A:

[Read more…]

Canções históricas

 

(e também por ocasião da Páscoa)

2 – Bella Ciao

È questo il fiore del partigiano
O bella ciao, bella ciao, bella ciao ciao ciao
È questo il fiore del partigiano
Morto per la libertà

Elegia a Stefan Zweig

stefan-zweig-cafe

No final do Grand Budapest Hotel, o narrador diz a propósito do protagonista, Monsieur Gustave, o concierge do hotel: I think his world had vanished long before he ever entered it. But I will say, he certainly sustained the illusion with a marvelous grace.

Stefan Zweig, cujos livros inspiraram o filme de Wes Anderson, também sustentou diversas ilusões com uma extraordinária graciosidade. O filme de Maria Schrader Vor der Morgenröte ou em Francês, Adieu l’Europe, pretende mostrar isso. Vemos Zweig com uma educação e polidez de outra época, uma luzinha de civilização num mundo cada vez menos civilizado. O filme escolhe sublinhar este aspecto – a forma como Zweig se relacionava com os outros – em detrimento de uma reflexão mais profunda sobre o pathos que guiou os últimos anos da sua vida. Infelizmente, é precisamente por isso que o filme se torna numa banalidade.

[Read more…]

Das boas ideias

Esta reportagem do Público merece ser lida não só pela qualidade do trabalho, mas pelas reflexões que pode – e deve – provocar. Ultimamente, devido ao Brexit, houve um crescimento no número de pedidos de nacionalidade portuguesa por parte de judeus britânicos. Esta reportagem vai à Turquia em busca de famílias sefarditas que fugiram no século XVI. Numa altura em que falamos tanto de refugiados, de pessoas que fogem da morte e da perseguição, muitos esqueceram-se que os judeus foram durante séculos os perseguidos por excelência na Europa. E tanto que insistimos em expulsá-los, e tanto que normalizamos a perseguição, que mesmo na altura mais dramáticas de todas, quando a Europa já se achava ingenuamente civilizada acabámos a matá-los aos milhões. E parece que não aprendemos.

Muito se fala também, embora não tanto em Portugal, na questão das reparações. Devem as antigas potências colonizadoras pagar reparações? Devem as nações negreiras pagar reparações aos descendentes de escravos? Deviam ter sido mais avultadas as reparações aos judeus?  São discussões longas e difíceis com as quais a maioria das nações – com a possível excepção, ironicamente, da Alemanha – não lidam muito bem. Portugal como país, como espaço político, cultural e identitário deve olhar para os seus pecados mais vezes, mais frequentemente. Penso que o fazemos pouco. E é por isso que esta medida de atribuição da nacionalidade portuguesa aos descendentes dos judeus sefarditas expulsos é tão importante, porque é simultaneamente, um pedido de desculpa e uma excelente ideia de apaziguamento.

Aos Habid, bruchim haba’im.

Das excelentes ideias

dresden-2

Já que aqui estou gostava de chamar a atenção para esta ideia do Instituto Goethe. O projecto intitulado House Call coloca 10 escritores Europeus em várias cidades Europeias de onde escrevem pequenas histórias, narrativas de viagem, pensamentos, anotações, tudo condensado num pequeno livro traduzido em seis línguas. O escritor português eleito  é Gonçalo M. Tavares, mas o projecto conta com a participação de quatro alemães, uma francesa, um espanhol, um belga, um italiano e um luxemburguês.

Quatro histórias já estão publicadas e podem ser lidas aqui. Vale a pena também ler o prefácio de Nicolas Ehler do Instituto Goethe em Nancy:

“No DEBATE PROLONGADO acerca da chamada crise europeia, tem-se referido repetidamente a necessidade de uma narrativa da Europa no seu conjunto: uma história que suscite o entusiasmo pelo projecto comum, que lhe confira uma forma convincente e uma identidade contemporânea”

Canções Históricas

 

1- Ah! Ça Ira (1790)

Ah ! ça ira, ça ira, ça ira,
Le peuple en ce jour sans cesse répète,
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira,
Malgré les mutins tout réussira.
Nos ennemis confus en restent là
Et nous allons chanter « Alléluia ! »
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira
 

Ainda o Nobel

homer

(Jean-Baptiste Auguste Leloir: Homer, 1841.)

Devo dizer que discordo de Francisca Prieto aqui no Delito. “A literatura é, simplesmente, para ser lida. Não tem outra função, não é apenas uma parte de outra coisa maior.”  Este foi um argumento que vi replicado em vários sítios. Mas não creio que seja de todo assim. Até ao século XVII na Europa, os livros eram lidos em voz alta para uma sala de pessoas (na corte, por exemplo). A literatura não era tanto lida como era ouvida e como era um exercício colectivo. As cantigas de amigo que são a base de qualquer programa de literatura portuguesa, eram originalmente cantadas.

Mais importante: Homero – a ter existido – não sabia ler nem escrever e os seus épicos sobreviveram por via oral até alguém os decidir fixar em escrita. Não podemos dizer simplesmente que Homero já não é relevante pois viveu há muito tempo. Homero é a base de toda a literatura ocidental e quem pensa em literatura e no que ela é hoje não o deve perder de vista.

Hoje em dia, em África e na Índia a oralidade continua a ser uma forma de contar histórias que não têm certamente menos valor do que as ocidentais histórias escritas.

No caso de Dylan, nem sequer estamos a falar na ausência total de um texto porque ele existe sendo “apenas” cantado.

Tudo isto para dizer que a nossa visão de literatura como algo ligado obrigatoriamente a um texto que tem de ser lido individualmente é muito recente.  Eu nem estou necessariamente a favor do Nobel a Dylan. Preferia que o prémio tivesse ido para outros possíveis candidatos. Mas parece-me salutar que a Academia tenha uma visão lata do que é Literatura, uma visão lata da importância da Palavra, seja ela escrita ou oral, e especialmente, uma visão que obviamente sabe de onde tudo isto veio.

O Nobel

A ideia de que o Nobel da literatura premeia alguém que é o melhor de todos é um bocado ingénua para não dizer impossível (o melhor de todos é o Tolstoy e já não lhe podemos dar um prémio).
O que o Nobel premeia é alguém que é muito bom de uma forma consistente e que a maior parte das vezes o merece verdadeiramente. Não é a questão de ser o melhor de todos mas é sim de ser muito bom e de ser premiado em resultado disso. Se formos a pensar no Nobel em termos competitivos enlouquecemos.
É óbvio que há pessoas que o receberam e que não mereciam e pessoas que não receberam e que mereciam. Mas o Nobel premiou, ao mesmo tempo, pessoas como Thomas Mann, Saramago, Garcia Marquez, Toni Morrison, Gunter Grass ou Neruda . Ou seja, o desprezo que muitos sentem em relação ao Nobel da literatura pode ser compreensível mas simultaneamente parece-me de mau gosto rejeitá-lo e reduzi-lo a um prémio atribuído por razões políticas. Por muitos génios que não foram reconhecidos, muitos outros foram.

Cumpriu-se

portugal flag

Coisas que me agradam muito:

  •  A vitória da Selecção.
  •  O Éder a marcar no fim; um momento de ironia e de justiça poética que pôs em causa a minha visão do universo e das leis que o governam.
  • O Quaresma a mostrar o melhor de si mesmo e o melhor de nós.
  • O Renato que aos 18 anos teve de enfrentar uma miríade de gente a chamar-lhe mentiroso e mesmo assim conseguiu ajudar a equipa em momentos importantes.
  •  O exorcismo de 2004. Já merecíamos.
  •  A prova que o futebol é – e deve sempre ser – um jogo de equipa, de interajuda, de solidariedade. A queda de um jogador – mesmo um jogador tão extraordinário como Ronaldo – não impede a vitória se houver vontade e espírito de sacrifício.
  • Ontem andei por Lisboa e as pessoas estavam visivelmente felizes. Isso apaziguou a cínica que vive em mim.

Coisas que me desagradam:

  • Qualquer dia (hoje não porque estou feliz e gostava de continuar por mais algum tempo) temos de falar sobre esta coisa das generalizações. Já não temos 20 anos para fazermos reduzirmos milhões de pessoas a epítetos ridículos e/ou insultuosos.
  •  Portugal ainda não ter ganho a Eurovisão.

A um Mestre: Umberto Eco

 

SPETT.UMBERTO ECO A NAPOLI (SUD FOTO SERGIO SIANO)

O Riso liberta o vilão do medo do diabo, porque na festa dos tolos o Diabo aparece pobre e tolo, portanto controlável. Mas este livro poderia ensinar que libertar-se do medo do diabo é a sapiência. Quando ri, enquanto o vinho lhe borbulha na garganta, o vilão sente-se senhor, porque subverteu as relações de senhoria: mas este livro poderia ensinar aos doutos os enigmas argutos, e a partir daquele momento ilustres, com que legitimar a subversão. Então transformar-se-ia em operação do intelecto aquilo que no gesto irreflectido do vilão é ainda e felizmente operação do ventre. Que o riso seja próprio do homem é sinal dos nossos limites de pecadores. Mas deste livro quantas mentes corruptas como a tua extrairiam o extremo silogismo, pelo o qual o riso é a finalidade do homem! O riso, desvia, por alguns instantes, o vilão do medo. Mas a lei impõe-se através do medo, cujo verdadeiro nome é temor de Deus. E deste livro poderia partir a centelha luciferina que transmitiria ao mundo inteiro um novo incêndio: e o riso designar-se-ia como a arte nova, ignorada até de Prometeu, para anular o medo.

Umberto Eco, O Nome da Rosa. 1980.

A melhor forma de homenagear qualquer escritor, especialmente um génio como Eco, é lendo-o.

 

DiEM

O lançamento do movimento Democracia na Europa está a acontecer agora em Berlim.

 

J’Accuse, agora e sempre

j'accuse

Foi a 13 de Janeiro de 1898 que Émile Zola publicou o seu “J’accuse” no jornal Parisiense Aurore. Uma carta aberta ao Presidente da República Félix Faure onde era denunciada a injustiça do julgamento e prisão de Alfred Dreyfus, oficial francês e judeu, acusado de traição (e efectivamente condenado por isso). Excepcionalmente, numa época em que o anti-semitismo estava absolutamente disseminado pelas sociedades europeias,  Zola teve a humanidade suficiente para perceber a imoralidade – e o perigo – do preconceito, denunciando o anti-semitismo do governo e dos oficiais que trataram do caso.

A seguir à publicação da carta, Zola foi condenado a pena de prisão. Fugiu para Inglaterra onde continuou a lutar por Dreyfus que tinha sido enviado para o exílio numa ilha na Guiana Francesa. Mais tarde, em 1899, Dreyfus regressou a França e ofereceram-lhe um perdão – por um crime que não tinha cometido. Em 1906, foi oficialmente exonerado tendo-lhe sido atribuído a Legião de Honra.

Zola morreu em 1908 e Dreyfus estava presente aquando a transferência das suas cinzas para o Panteão nacional.

Versão Portuguesa da carta.

 

A esperança está na cultura

Um livro sobre uma história de amor entre uma israelita e um palestiniano foi retirado dos programas curriculares dos liceus israelitas. Em resposta, Geder Haya tornou-se um dos livros mais vendidos em Israel e “ocupa o primeiro lugar lugar na lista de livros do jornal Haaretz”.
A resposta dos leitores Israelitas só por si agrada-me bastante (assim como a resposta da Time Out de Tel Aviv). Mas também me agrada o comentário de Amos Oz:

“Por que não, então, proibir o estudo da Bíblia, já que se trata de censurar relações sexuais entre judeus e não-judeus?”

Na adversidade, meus amigos, a resposta é ler livros.

 

O que responder?

voltaire statue

Voltaire, Dicionário Filosófico, excertos do artigo “Fanatismo”:

Resumindo, todos os horrores de quinze séculos podem ser renovados num só, desde as pessoas sem defesa chacinadas aos pés dos altares, dos reis esfaqueados ou envenenados, um vasto Estado reduzido a metade pelos seus próprios cidadãos, desde a nação mais belicosa até à mais pacífica dividida pela espada desembainhada entre o pai e o filho, os usurpadores, os tiranos, os executores, os parricidas e os sacrilégios violando todas as convenções divinas e humanas pelo espírito da religião: cá está a história do fanatismo e dos feitos.

Não há outro remédio a esta maldita epidemia que o espírito filosófico, que espalha, passo a passo, os costumes dos homens e que impede os acessos do mal. As leis e a religião não chegam para lutar contra a peste das almas. A religião, longe de ser um alimento salutar, torna-se um veneno nos cérebros infectados. Os miseráveis inspiram-se sem cessar no exemplo de Aod que assassinou o rei Églon; de Judith que cortou a cabeça de Holopherne enquanto dormia com ele; de Samuel que desfez o Rei Agag; do padre Joad que assassinou a sua rainha etc. etc. Eles não percebem que estes exemplos, que são respeitáveis na Antiguidade, são abomináveis no tempo presente: eles põem a sua loucura na própria religião que os condena.

O que podemos responder a um homem que te diz que prefere obedecer a Deus que aos homens e que em consequência disso ele está certo de merecer o céu por te matar?

Os líderes dos fanáticos, que colocam os punhais nas suas mãos, são uns velhacos maliciosos. Eles assemelham-se ao Velho da montanha que, diz-se, deu às pessoas fracas uma pequena amostra do paraíso, prometendo-lhes uma eternidade de tais prazeres, desde que eles matassem todos aqueles que ele lhes ordenasse. Em todo o mundo só uma religião não foi conspurcada pelo fanatismo, a dos literatos chineses. Quanto aos filósofos, em vez de serem infectados por essa pestilência, eles foram um remédio contra ela pois o efeito da filosofia é compor a alma e o fanatismo é incompatível com a tranquilidade. Relativamente à nossa santa religião ter sido tão corrompida por estes infernais impulsos, é a loucura dos homens que se deve culpar.

O Dicionário Filosófico de Voltaire: Liberdade de Pensamento

 

Por volta do ano de 1707 quando os ingleses que haviam vencido a batalha de Saragoça protegiam Portugal e na mesma altura em que, durante algum tempo, deram um rei a Espanha, Lord Boldmind, um oficial que tinha sido ferido, estava a tomar as águas em Barèges. Ele encontrou nesse local Conde Médroso que tinha caído do seu cavalo atrás da bagagem, a uma légua e meia do campo de batalha e que também tomava as águas. A Inquisição era-lhe familiar enquanto Lord Boldmind era apenas familiar na forma de conversar. Um dia, após o vinho, ele teve o seguinte diálogo com Médroso:

[Read more…]

O que Portugal precisa é de um Arnaldo Matos em cada paragem da Carris

Política de esquerda esta? Isto não é política de esquerda. Isto é tudo um putedo!

Apesar de nunca ter tido a oportunidade de o conhecer pessoalmente penso ser importante dizer que o João sempre foi alguém que me impressionou pela forma como defendia as suas opiniões e pela coêrencia que sempre o caracterizou. O João partilhava de principios salutares e defendia-os de uma forma que está a desaparecer: franca e livremente, sem constragimentos, sem aderir a esta ou aquela posição só porque “é suposto” ou porque “encaixa”. Todos os seus posts neste blog revelam esta independência de pensamento e este espírito crítico. E isto é tão, tão essencial, tão necessário.

O que é preciso são mais pessoas como ele. Até sempre, camarada.

A decadência de Houellebecq

Comprei na feira do livro o novo do Houellebecq, Submissão. Já tinha comprado há uns o meses o Mapa e o Território que comecei mas entretanto não acabei de ler porque se meteram outras coisas. Submissão é comparativamente mais fácil de ler mas a minha experiência com o Houellebecq não é muita e portanto o meu texto será em parte construído através de uma série de generalizações mais ou menos banais, mas sinto que vale a pena pensar nelas.

A pessoa lê Houellebecq e fica com a sensação de duas coisas: a primeira é que as personagens são todas iguais. Dei uma olhadela à sinopse dos outros livros dele e não me parecem ser diferentes. As personagens principais são sempre as mesmas (homens, introspectivos, com tendências depressivas, que gostam de mulheres, de beber e de comer): só muda o enredo. A segunda é que Houellebecq tem na cabeça uma série de ideias sobre a civilização ocidental (se quisermos ser generosos, sobre as várias civilizações) e os livros acabam todos por ser sobre isso. Aliás, não fiquei com muita vontade de ler os outros, embora queira acabar o Mapa e o Território que penso ser até mais interessante do que Submissão.

[Read more…]

As pérolas do Henrique, número 24601

Eu concordo com o Henrique Raposo. Acho que chamar Ernesto ao filho é um disparate. Se é para dar nome de revolucionário a sério que chame Maximiliano à criança.

Uma nota final sobre o Charlie Hebdo

Após ler este texto e este conjunto de textos comecei a pensar que todos têm as suas pertinências, uns mais do que outros. Mas parece-me também trágico que Charlie Hebdo, um jornal que nunca pretendeu ser o símbolo da República francesa (lembro-me de Luz a dizer nesta entrevista “I didn’t go to the spontaneous rally on January 7th. People sang the national anthem. We’re talking about Charb, Tignous, Cabus, Honoré, Wolinski: they would’ve scorned this kind of attitude.” E que “I’m going to think about my dead friends, knowing they didn’t fall for France!” ) que não pretendia influenciar ou coagir, que não pretendia fazer dinheiro ou ser popular, que era, sobretudo, um jornal anti poder e anti-sistema se tenha tornado num argumento para esgrimir em discussões sobre a laicidade, ou o universalismo do republicanismo francês, a forma como lidam com o colonialismo, os limites da laicidade, da liberdade de expressão, ou pior ainda uma discussão sobre a sociedade de valores francesa. Não é que estas discussões não sejam válidas, não é que não se devam ter. Custa-me é ver este jornal que tem tão poucas pretensões, que nunca pretendeu ser um símbolo, ser dado como exemplo máximo de todas estas coisas (ou o exemplo contrário a todas estas coisas, dependendo do autor), como um ponto de partida essencial para todas estas discussões. Charlie Hebdo era só um jornal satírico que nem sequer tinha grande público (esteve praticamente à beira da bancarrota nos últimos anos). Custa-me ver no fundo, o jornal a ser instrumentalizado desta forma não só por políticos mas por intelectuais e activistas que de certeza que têm até as melhores intenções.

É difícil de ver isto porque não há ninguém para falar em nome do jornal, porque as pessoas que podiam falar sobre o jornal em si estão mortas. Parece-me óptimo que se debata estes pontos de vista, que se ponha em causa visões de sociedade mas acho um absurdo caírem no erro de atirar o jornal para todas estas discussões como se Charlie Hebdo fosse de repente um símbolo da França, como se estivesse para o regime como está Charles de Gaulle ou a Marselhesa.

Ao menos tenham a decência de ouvir um dos sobreviventes: ” Today, it seems that Charlie fell for the freedom of speech. The simple fact is that our friends died. The friends we loved and whose talent we admired so very much.”