Mistérios

“Perro semihundido” (detalhe), de Francisco de Goya y Lucientes

 

O cão passa os dias e as noites na loja do dono. Pela manhã, ainda antes da abertura da loja, costumo vê-lo deitado ao sol, muitas vezes ainda a dormir, patas comicamente viradas para cima, uma imagem que faz sorrir quem passa e fez dele o favorito da rua. Outras vezes, segue-nos com uns pequeninos olhos negros que parecem de urso de peluche.

Hoje, porém, estava sentado e olhava a parede de granito iluminada pelo sol. Era bela a parede, de sombras rugosas suavemente esbatidas, e belo o cão. Imóvel, de perfil para nós, os que passamos na rua, que desta vez não conseguimos chamar-lhe a atenção, e atento ao percurso do sol na parede até aqui sempre fria. [Read more…]

Os cavalheiros

As velhotas do meu bairro têm todas o seu cão, pequenino e de caminhar trôpego como elas. Quando elas saem à rua, eles caminham ao lado, passos sincronizados, e se elas param a falar com as vizinhas, eles esperam com paciência mas não se deitam porque sabem que elas não querem pêlos sujos a manchar-lhes a tijoleira de casa. Aguardam o desenrolar da conversa com uma expressão de beatitude zen e olham com compostura quem passa. Quando a dona retoma a marcha, seguem-na, logo se colocam a seu lado, passos sempre harmonizados. Elas falam muito com eles, repreendem-nos, dão-lhes mimo. “Lá estás tu, deixa lá de cheirar a porta dos outros. Já estás cansado? Hoje estás muito fidalgo. Anda, meu menino, vamos embora.”

São cães de porte pequeno, quase todos bastante feios, com um caminhar rebolado e vagaroso, e olhos húmidos e expressivos. Raramente ladram, abdicaram disso para não incomodar, afinal as donas têm corações fracos, pernas inchadas da má circulação, a tensão alta, não precisam de bichos caprichosos e que façam alarido. Querem um companheiro para ver a televisão ou ir à padaria, um a quem confiem historietas antigas, sempre as mesmas, e que não proteste nem seja demasiado canino, demasiado biológico, que seja pouco cão, enfim. [Read more…]

Manuela e os cães

Manuela Moura GuedesManuela Moura Guedes, recebeu, recentemente, tratamento hospitalar por ter sido mordida pelos seus próprios cães.

Desejo, sinceramente, as melhoras da vítima. Mas não posso deixar de me interrogar sobre as causas de tão estranha ocorrência. Vai daí, consultei especialistas, mergulhei na bibliografia sobre casos que tais e, segundo apurei, podem ser duas as razões: ou a Manuela tinha feito mais uma intervenção no rosto (plástica, botox a mais, maquilhagem estranha ou qualquer outra razão do género), ficando irreconhecível para bichos, ou os cães assistiram ao desempenho da sua dona no programa televisivo Barca do Inferno.

Em caso de julgamento, estas são explicações que militam em favor dos caninos como sérias atenuantes.
– Nota: os animais estão bem

O rosnar de um regime decadente

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Em Democracia, naquela em que ainda vivemos, o direito à manifestação ainda se mantém consagrado no ordenamento jurídico que, felizmente mas não por falta de vontade, os empregados parlamentares das diferentes máfias que compõem o sistema ainda não conseguiram alterar, para tristeza de todos aqueles que clamam por mais impunidade para o assalto diário de colarinho branco ao país que hoje celebra o seu dia. E enquanto o dia da submissão final não chega, há que ir rosnando a todos aqueles que tentaram colocar em causa o plano.

Durante a cerimónia comemorativa do 10 de Junho que teve lugar hoje de manhã na Guarda, o antigo accionistanegacionista da SLN sentiu-se mal e teve que ser retirado da tribuna onde debitava as habituais nulidades que o caracterizam. Alguns iluminados e idiotas deste país correram a culpar um grupo de manifestantes que levava a cabo um protesto legítimo contra o governo, tal como previsto no 45º artigo da “infame” Constituição da República Portuguesa. Eu sou da opinião do João José Cardoso, até porque Portugal não é uma monarquia: não está em condições para exercer funções, vá gozar a sua reforma que mal dá para as contas. Junto com a da Maria e considerando que não deve gastar um euro que seja há alguns anos, fruto de viver às nossas custas, mais caro por português do que a rainha Isabel por inglês, deve chegar.

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Cena de rua

Manta estendida no chão, por cima de cartões e sacos plásticos. O sítio não é o melhor, tão desabrigado, demasiado perto da esquina, sopra vento o dia inteiro. Impossível não vê-los desde longe. O homem está sentado no chão e ao seu lado estão os quatro cães, com seis pratos de biscoitos à frente, pratos generosamente abastecidos pelas senhoras que zelam com cuidados maternais pela comunidade canina da cidade. Assim alinhados, ele embrulhado numa manta, todos os cães com a sua mantinha pelo lombo, os pratos de biscoitos à frente, parecem sentados frente à televisão, quase divertidos com o programa que lhes tocou, essa sucessão de gente que passa com uma expressão de tédio ou de angústia, um riso adolescente, um silêncio ressentido entre casais. A cena doméstica surpreende, faz-nos abrandar para ver melhor a família, os cãezinhos tão ordeiros, tão pacatamente sentados que parecem gente, gente crescida que observa com curiosidade e talvez alguma surpresa o espectáculo das gentes que passam. [Read more…]

O Governo, os Cães e os Gatos

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Vamos imaginar que o apartamento é um duplex T6. Não pode ter 4 cães e 4 gatos? Bem, se for um T0 é mais complicado. E, já agora, os piriquitos, como é? É que fazem um barulho do caraças. Mais, e os maníacos das cobras, como ficam? Sem esquecer o problema das galinhas e mesmo dos coelhos que, como se sabe, são senhores(as) de forte capacidade de multiplicação.
E se em vez de folclore legislativo, o ministério do ambiente estivesse mais preocupado com as condições vergonhosas da maioria dos canis municipais e do abandono dos animais pelos seus donos? Já para não falar nas touradas e no problema dos animais de circo abandonados.
Isso é que era merecedor do meu respeito.

Como cão e gato

A minha cadela aceitou partilhar casa com um gato. Eu não tive nada a ver com o assunto, nem fui consultada, o que me pareceu normal porque a Rita já é uma cadela menopáusica, com idade suficiente para saber o que quer. O gato é novinho, suponho que um dos muitos órfãos que vagueiam pelo bairro, e começou a rondar o pátio com passinhos furtivos, olhos vivos de pequeno reguila, e aquele ar de desamparo que os gatos podem ter mas só quando querem. Começou por roubar pedacinhos de comida, foi ganhando coragem, aproximou-se dela e, como ela permanecesse refastelada, a fazer de conta que não o via, ele fez-se atrevido e não só comeu tudo o que estava no prato dela, como lhe foi dando pancadinhas leves com as patas, esfregando o dorso na sua barriga, roçando a cabecita no focinho indolente dela. [Read more…]

Cães de Atenas recebem animais da Troika

ÁÈÇÍÁ - ÓÕÍÁÍÔÇÓÇ ÔÙÍ ÅÊÐÑÏÓÙÐÙÍ ÔÇÓ ÔÑÏÚÊÁÓ ÌÅ ÔÏÍ ÕÐ. ÏÉÊÏÍÏÌÉÊÙÍ ÃÉÁÍÍÇ ÓÔÏÕÑÍÁÑÁ<br /><br />(EUROKINISSI/ÃÉÙÑÃÏÓ ÊÏÍÔÁÑÉÍÇÓ)
Troika recebida pelos cães vadios de Atenas à porta do Min. das Finanças – Fotografia Opinion Post, info via Artigo 21º.

A propósito de cães e luta de classes

Milito no partido dos gatos desde pequenino. O cão, cão, segue o dono como seguiria o líder na matilha. Há o cão inventado pelo homem para ser assassino, o cão que pastoreia, o cão que guarda, o cão que morde pouco, mas o cão, cão, lambe sempre o dono.

O gato, animal de território pouco dado a bandos, conheceu a mãe, livrou-se dos irmãos, e tem domesticamente perante quem o alimenta o trato estritamente necessário para a sua sobrevivência. Sei segredos, gatos que salvam vidas, mas os meus defuntos não entram aqui.

Por via de uma família que mantinha um cão de matar entalado entre uma varanda e uma cozinha, assunto que naturalmente rebentou na morte de uma criança, anda por aí tanto latido que ensurdece. A esquerda divide-se, a direita devota de uma pomba estúpida, citando o sábio Caeiro, resfolega e puxa para a tourada, uma arca de noé em formato babel.

Tola carnificina de palavras. Mas recordo que os animais, sendo todos iguais são uns um pouco diferentes de  outros, adoro um cão, raivoso, este do Sérgio Godinho, que tão bem o explica. E esta é para ti, Raquel Varela, essa do Hitler enferma de uma pequena descontextualização histórico-zoológica: os animais irracionais, legitimamente, defendem-se uns aos outros, não obrigando com isso os racionais a desprezá-los; e depois tens no teu título um erro gramático, não é o cão de Hitler, é sempre o cão do Hitler. Faz uma certa diferença.

A semana que aí vem…

Será uma semana bem especial:

– uma marca famosa vai lançar uma campanha publicitária com  umas miúdas que gostam de carteiras. Têm problemas na fala e por isso será uma excelente oportunidade da marca afirmar a sua dimensão social;

– um cão vai matar um menino, e haverá uma petição que irá defender o cão; Só não consigo ver aqui na bola de cristal se a petição vai pedir a condenação da criança por ter instigado o canino;

– o FMI vai apresentar formalmente, no Palácio de Belém , um relatório sobre a Refundação do Estado; também não consigo perceber se será em inglês ou em português, mas consegue-se perceber que o Moedas está a rir; não se conseguem ver a Maria nem o Sr. Silva;

– o Sporting ganhará um jogo. Sim, sem ser de Futsal;

– o Kardec vai marcar um golo;

– o Setúbal irá perder com uma grande penalidade inventada.

Tirando isto, parece-me que a próxima semana não trará novidades.

O austericídio laranja, esse, parece que é para continuar.

Arquitectura para cães ou o futuro é deles

Niemeyer, 104 anos, o arquitecto brasileiro conhecido sobretudo por traçar Brasília, está doente; os nossos jovens arquitectos emigram; os ateliers dos grandes como Siza Vieira estão a dispensar pessoal e o gabinete pode fechar; e o presidente da Ordem dos Arquitectos afirmou à RR que “A profissão de arquitecto atravessa, tanto quanto há memória, a mais grave crise de sempre, por falta de oportunidades, trabalho e encomendas, o que tem como resultado uma situação de praticamente paragem de grande parte dos ateliers ou dos profissionais envolvidos, sobretudo, na área de projectos, mas também todos aqueles que estão ligados ao sector da construção”.

desemprego na construção civil já atinge 100 mil (dados de Outubro).

Não havendo casas de gente para construir, os arquitectos e designers “de renome”  dedicam-se ao desenho de uma linha de casas de cães

O futuro é dos animais!

O que pensará Niemeyer destes novos clientes e da nova «arquitectura»?

Não me admirava nada que por aí surgisse um novo curso ou nova disciplina nos cursos de Arquitectura.

E para concluir: cães tratados como gente e gente tratada como cães

Rendimento social de inserção: a próxima vítima

Em vésperas de concluir o 2º ciclo Cristina Oliveira da Silva escreve no Diário Económico, e o revisor concorda:

No período homólogo, eram precisamente este último grupo – os rendimentos de trabalho – que assumiam a liderança.

Também descobriu que 18% dos chulos do Rendimento Social de Inserção têm conta bancária, e 29% outros rendimentos como “acções, depósitos a prazo, contas-poupança ou outros.” Não se percebe se os 29% incluem ou não os 18%, e nem isso agora interessa para nada, como diria a grande Teresa de outros embustes.

Qual o valor dessas poupanças, e já agora quanto rendem, não é notícia. Notícia são os 18% que têm a lata de receber do estado tendo conta num banco. Que horror. Vão já pedir para a porta das igrejas, seus malandros (rosnar miudinho).

A rede viral dos jornalistas em vésperas da conclusão de qualquer coisa lá funciona: no I Cláudia Reis troca um cerca por um quase. Estão feitos ao bife, os quase 18%, os quase 29%  ou, o mais provável, os cerca de 47%, levam já com o corte do RSI, vão lá viver por conta dos rendimentos, cabrões de merda, e a partir de agora o pagamento é feito por transferência bancária, seus chulos, não tens conta? vai pedir para a porta da igreja, filhodaputa, moinante, gatuno (rosnar já muito grande). É por causa disto que este país não avança, não é Cristina Oliveira da Silva? (cães a ladrar muito alto, em primeiro plano).

E assim a medicina veterinária pula e avança…

Não tenho cães, nem sou amigo ou associado de qualquer associação de defesa dos animais. Tenho é cerébro e consciência crítica. E, vá lá, aguma decência, apesar da minha tendência para o humor negro. Por isso, esta notícia do JN, a confirmar-se, não me merece mais comentários.

O drama dos cães de Loures

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Cães de Loures from Jose Cyrne on Vimeo.

Eram 80 animais que viviam num terreno ocupado ilegitimamente por uma pessoa que os criava com intuitos dúbios. Estavam alojados em cima de várias toneladas de ossadas de vaca (que era a única alimentação que lhes era fornecida) e de cães mortos. Nasciam, viviam, alimentavam-se, defecavam e urinavam em cima dos ossos que eram ao mesmo tempo a sua única fonte de alimentação. Neste cenário, só os mais fortes sobreviviam. Os que morriam eram também comidos pelos seus companheiros de cativeiro – fenómenos de canibalismo na espécie canina só acontecem em situações extremas como esta.
A Animais de Rua conseguiu colocar os cães no canil de Loures e encaminhar 15 cães (5 para cada um) para os canis municipais de Lisboa, Amadora e Vila Franca de Xira. A situação destes animais é ainda mais grave e urgente do que a dos animais que ficaram no canil de Loures, uma vez que não estão a ser alvo de qualquer divulgação, já que, inacreditavelmente, estes municípios não permitem a captura de imagens dos animais que albergam..
A associação Animais de Rua compromete-se a esterilizar todos os animais que forem retirados do canil de Loures.

Num domingo qualquer

Um passeio pedonal ao longo da costa, num solarengo dia de fim de Inverno.

Por mim, e serpenteando por entre os demais transeuntes domingueiros, ciclistas de auriculares nos ouvidos fazem de nós peões de gincana. Aqui e além, cães puxam os seus donos ou, pior, correm soltos e livres, apesar das sonoras ordens de comando sem qualquer tipo de obediência. Os constantes latidos de cães que marcam território entre eles.

Na praia, na constante mutável linha de chegada do mar sobre o areal, dois jovens divertem-se sob a mira de uma fotógrafo e de um operador de câmara de vídeo. Parecem estar a registar momentos de alegria que se esforçam por parecer natural, espontânea, certamente para um futuro álbum de casamento.

O passeio prolonga-se, por entre latidos e vozes de comando de donos que fazem pior figura que os caninos que julgam dominar. Escutam-se conversas cruzadas, vê-se gente de calções desportivos a sair de carros estacionados em lugares de deficientes, ostentando óculos escuros tão envolventes ao rosto quanto os óculos usados por mergulhadores.

A meio passo, uma pequena multidão mergulha numa improvisada banca onde se expõe casacos de imitação de pele, que são vistos e revistos pelos curiosos das pechinchas; um pai tira fotografias à sua infanta que parece ter começado a dominar a arte de patinar; um solitário fotógrafo repete fotografias de gaivotas em vôo.

No regresso ao carro, vejo ainda o jovem casal na praia, a tentar seguir as ordens de quem fotografa e filma, para que dúvidas não hajam sobre a sua felicidade. Um grupo de homens de meia-idade aprecia a cena e faz comentários jocosos, um pouco à surdina.

A brisa marítima, carregada de iodo e sal, é saboreada nos lábios salpicados, devolvendo a nossa atenção ao mar, longe de tudo o resto.

Aconteceu num domingo qualquer, e poderia ter acontecido a qualquer um de nós.

Chorar por um animal

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Já chorei por muitos animais. Mas o Pantufa era especial.
Cão rafeiro, foi recolhido pelos meus sogros há 16 anos quando uma puta qualquer, que tinha deixado a sua cadela parir, queria afogá-lo à nascença. Teve sorte – dos irmãos, foi o único que se safou.
Foi para lá bebé de dias, corria o mês de Agosto de 1993. Em Setembro / Outubro desse ano, comecei eu a frequentar a casa, como namorado daquela que é hoje a minha mulher. Lembro-me dele muito pequenino, aos saltos por todo o lado e sempre, sempre a ladrar.
Passaram-se os anos. Tratado como um rei, teve a vida que todos os cães gostariam de ter. Teve a vida que alguns humanos gostariam de ter. Com muito espaço para correr e para saltar, com os seus passeios diários, com o arrozinho de frango sempre à espera. E sempre, sempre a ladrar quando alguém chegava a casa.
Teve uma vida muito feliz, o Pantufa. Nos últimos anos, no entanto, vieram os problemas de saúde. Estava velhote. Ultimamente, já nem ladrava. Os rins deixaram de funcionar e, desde Domingo, já não conseguia comer.
Hoje, a minha sogra decidiu levá-lo ao veterinário. Tive o prazer de o conduzir na sua última viagem. Já não havia muito a fazer, o bicho estava em sofrimento e eventuais tratamentos só adiariam o inevitável. Num acto de misericórdia, o veterinário aconselhou a eutanásia. E assim foi. Anestesiou-o primeiro e, em seguida, adormeceu-o suavemente para sempre. Com a minha filhinha ao colo, ainda pude entrar no consultório para afagar pela última vez um corpo já sem vida.
« – Queres fazer uma festinha ao Pantufa, bebé?»
Não quis. Infelizmente, nunca se vai lembrar dele.

Serão os bichos como as pessoas?

   

É a grande dúvida que sempre tive. Desde o dia que as minhas filhas queriam gatos e porcos de índias ou hamsters em casa, também denominados marmotas-da- alemanha, para tratar e tomar conta deles em casa.Com um carinho, que era impressionante! Eu sempre tinha gostado de cães e cavalos, mas fora de casa, no seu sítio, como essas casotas para os cães e o estábulo para os cavalosMais impressionante ainda, eram as comidas especiais preparadas por elas, mas compradas pelo pai. [Read more…]

Dos cães

 O escritor Mário Cláudio publica hoje, na sua “Agenda”, um elucidativo retrato de um canil de uma cidade não identificada. O título sintetiza o tom geral do texto: “Descida ao Inferno”.

 

Não me conto entre os activistas da causa animal. E isto deve-se fundamentalmente ao facto de considerar que os direitos dos humanos ainda estão longe de cumprir-se, questão que me parece mais prioritária. Também não me inclino, como alguns, a considerar que o conhecimento dos humanos nos aproxima mais dos animais, porque não estendo a toda a humanidade os defeitos de uns poucos.

Mas considero que é dever de todos repudiar qualquer tratamento cruel que seja infligido a um ser vivo, admitindo, porém, que essa minha convicção está tingida pela contradição de eu não ser vegetariana.

 

Há uns anos, quando cá em casa foi decidido que era hora de adoptar um(a) companheiro(a) para a rafeira Changana, fomos a um canil. Nas suas celas de cimento frio, ainda esperançados pela possibilidade de serem escolhidos, ou já resignados à morte certa, sucediam-se os encarcerados. Quem os guardava desprezava-os, era evidente. A cada novo corredor, o percurso ia-se fazendo mais angustiante.

A escolha era impossível, e o ambiente era propício a que os visitantes fossem carregando aos ombros, a cada passo, o peso da crueldade da sociedade humana, como se dela fôssemos os desapiedados responsáveis.

 

Acabámos por escolher um rafeiro velhote, que fora abandonado nas ruas quando perdera os encantos da juventude. O veterinário iria diagnosticar-lhe uma doença cardíaca que o poderia fulminar a qualquer instante, e passámos os primeiros dias à espera de vê-lo tombar ao mínimo esforço. Ele resistiu e ao fim de uns meses era o pai orgulhoso de uma ninhada de sete. 

 

Foi justamente com essa ninhada de encantadores cachorrinhos que descobri que a relação com os animais é, na verdade, um delicioso potenciador das relações entre pessoas. Conseguir uma família para cada um dos seis que decidimos oferecer ocupou-nos várias semanas.

Um foi para uma família que lhe chamou Jardel, o goleador da época, outro foi parar a Mortágua, de onde era a amiga que o adoptou. Eu começara a conduzir pouco antes e quase nos espetava contra uma parede quando os fui levar á estação de comboios, mas acabámos por sobreviver. Outros dois foram para famílias da vizinhança.

 

Um dos cachorros, talvez o mais bonito, foi adoptado por uma família dona de uma rede de sapatarias, e transformou-se, em poucos meses, de filho de rafeiros em herdeiro de um império. Nas primeiras fotos que nos chegaram, ali estava ele, muito penteado, instalado em cima de um sofá aparentemente caríssimo, com uma coleira de brilhantes e ar de quem se instalara na vida.

Restava-nos um problema, uma cachorra difícil, a única que não brincava com os irmãos e resistia a carícias, e que ninguém escolhera. Pensámos em ficar com ela, juntamente com outra, a mais gorda e pesadona, que também não era muito cobiçada e que já tínhamos decidido deixar cá em casa.

Acontece que um dia em que regressávamos a casa com a difícil, talvez do veterinário, já não me lembro, uma das senhoras que trabalham na rua junto a umas pensões ao pé da nossa casa de então, a viu e ficou, claramente, apaixonada. Ganhou coragem para meter conversa, elogiando o bicho, e nós, interesseiros, vimos uma oportunidade. As vizinhas metediças passavam com ar horrorizado, calculando que acertaríamos as condições de algum "ménage à trois", enquanto nós ficávamos a saber que a senhora vivia sozinha com uma filha de oito anos, e que a menina tinha muitas dificuldades em estabelecer relações com outras crianças, permanentemente encerrada sobre si mesmo, receosa do mundo e dos outros, os mesmos que já a tinham magoado.

Uma semana depois éramos recebidos na casa delas para levar-lhes a cadelinha. O encontro entre o animal e a criança foi dos episódios mais comoventes a que assisti. Pareciam ter reconhecido de imediato uma na outra o aconchego que buscavam sem saber onde. Tornaram-se inseparáveis, soubemos depois, e a amizade da cadela viria ser fundamental no percurso daquela criança.

E a nossa cadela gorda sofreu um transformismo digno de uma borboleta. Em poucos meses, transformou-se num bicho esguio, capaz de saltar a alturas improváveis, e que, durante a sua turbulenta adolescência, foi uma delinquente que saltava o muro para ir matar, numa orgia de sangue e penas esvoaçantes, as galinhas da vizinha.

Também podia falar-vos dos gatos, em particular do intrépido Pancho, que adoptou como lema de vida a divisa "vive depressa, morre jovem", mas por hoje não vos maço mais.